sábado, 28 de janeiro de 2012

Dízimo: uma confissão de fé

“Duas coisas te peço, meu Deus;  não me as negues antes que eu morra:
afasta de mim a falsidade e a mentira;
não me dês nem a pobreza nem a riqueza;
dá-me o pão  que me for necessário;
para não suceder que, estando eu farto, te negue e diga: “Quem é o Senhor?
Ou que, empobrecido, venha a furtar e profane o nome de Deus. Amém!”
(Provérbios 30.7-9)

Introdução

Falar em dinheiro e em contribuição nas nossas igrejas pode causar constrangimento e até aborrecimento. Mas, ainda que muitas pessoas se sintam desconfortáveis com esse tema, é preciso encará-lo e procurar compreendê-lo dentro da tradição bíblica.
No contexto de pluralismo religioso brasileiro, temos assistido inúmeros discursos geralmente de igrejas que entendem a prática do dízimo como uma negociação com Deus a, ou seja, eu pago o dízimo a Deus e, em troca, recebo bênçãos e prosperidade na minha vida. Esse discurso está relacionado com uma teologia que chamamos de “Teologia da Prosperidade”. Cabe, nesse contexto, resgatar o significado bíblico do dízimo, em especial no Antigo Testamento (AT), e tentar atualizá-lo para as nossas comunidades de fé.

Origem e dimensões do termo

O termo dízimo (em hebraico ma’aser) significa a décima parte de alguma coisa. No contexto bíblico o termo tem, pelo menos, duas dimensões: em primeiro lugar, a dimensão da gratidão a Deus pelo que nos foi dado, celebrada festivamente na comunidade de fé; e, em segundo lugar, a dimensão do compromisso  ético, ou seja, o compromisso do cuidado com a vida, as relações justas, a terra, a comunidade e com Deus.

Significado do dízimo no Antigo Testamento

Vamos encontrar, no AT, diversos textos sobre a prática do dízimo. Como não é possível, neste espaço, um estudo aprofundado, contentamo-nos em apontar alguns textos representativos, deixando ao leitor e à leitora a tarefa de se aprofundar em conjunto com a sua comunidade de fé.

1. Gratidão pela vitória (Gn 14). Após vencer diversos reis, Abraão foi abençoado por Melquisedeque, o sumo sacerdote e, ao mesmo tempo, rei de Salém (=Jerusalém). E, em reconhecimento de que tudo que havia conquistado fora graça de Deus, Abraão oferece o dízimo. Abrão tinha consciência de que nada do que havia conquistado era dele, mas tudo pertencia a Javé.

2. Gratidão pela bênção de Deus (Gn 28.1-22). No lugar sagrado de Betel (=casa de Deus), Jacó sonhou que Deus estava presente justamente nesse lugar onde, mais tarde, foi construído o santuário de Betel, para o qual peregrinavam as pessoas em busca da bênção divina, em especial, de terra fértil, colheitas fartas e descendência. Nesse contexto, o dízimo a ser levado ao santuário representava gratidão por todos os bens recebidos através da bênção divina. Tudo vem de Deus, é justo que demos a ele parte do que recebemos.

3. Entregar a Deus o que é de Deus (Lv 27.30-32). O livro de Levítico reúne as mais diversas leis da época, a maioria delas sobre sacrifícios, sacerdotes e coisas puras e impuras, ou seja, leis importantes somente para a sua época. A lei do dízimo confessa que tudo temos vem de Deus e que, portanto, devemos dar a ele o que, no fundo, é dele. 

4. Sustento dos trabalhadores e do serviço do templo (Ne 13.10-14). Os levitas eram as pessoas que se dedicavam ao trabalho religioso nos santuários. Os levitas deveriam receber seu sustento do dízimo levado ao templo. Na época de Neemias, os levitas abandonaram o serviço no templo porque tinham que buscar o seu sustento em outras atividades. Para restaurar os serviços religiosos, Neemias teve que restabelecer o pagamento do dízimo. Isto mostra que os dízimos sustentavam as pessoas que trabalhavam no serviço religioso da comunidade (cf. 2 Cr 31.2-10).

5. Partilhar a alegria da festa e cuidar dos necessitados (Dt 14.22-29). Esse texto traz duas concepções importantes sobre o dízimo. Em primeiro lugar, o dízimo era levado ao templo e consumido comunitariamente no lugar de culto. Predomina o ambiente festivo. Toda a família, inclusive escravos e escravas, participava da festa. O texto mostra que o dízimo é compartilhado em alegria. Em segundo lugar, a cada três anos, o dízimos era reunido guardado em cada aldeia para socorrer as pessoas necessitadas do lugar: órfãos, viúvas, estrangeiros e levitas carentes.

No Antigo Testamento, portanto, o dízimo é basicamente uma contribuicäo regular para o sustento dos que trabalham no templo. Na origem, ofertava-se, como diz o termo, 10% da producäo agrícola e pastoril. Com o decorrer do tempo, no entanto, essa contribuicäo regular se tornou um tanto flexível, näo mais perfazendo todos os 10% da producäo total, ou seja, da receita total da família. Mas permaneceu o objetivo básico: manter o trabalho regular do santuário.

Ao lado do dízimo, havia, no Antigo Testamento, as ofertas esporádicas em forma de sacrifícios com as mais diversas finalidades (primícias, sacrifícios de comunhäo ou de agradecimento, oferendas para expiacäo de culpa, etc.). Esses sacrifícios esporádicos receberam um novo significado no Novo Testamento e na igreja cristä. Essas ofertas, também chamadas de coletas, passam a ser recolhidas, na antiga igreja cristä, para ajudar outras comunidades que se encontram em dificuldades. Exemplo clássico é a coleta que Paulo recolhe nas comunidades gregas para ajudar os pobres de Jerusalém (1 Co 16.1-4; 2 Co 8-9). Essas ofertas formam um elo de comunhäo entre as comunidades. 

Indicações práticas para os nossos dias

Com preocupação ouvimos que membros da igreja, alguns até em funções ministeriais, säo contra o dízimo ou, entäo, demonstram pouco interesse no assunto. Pessoalmente entendo que o dízimo é uma confissão de fé. A confissäo de que Deus é criador, sustentador e mantenedor da vida nos constrange a que demonstremos isso na prática. Expressäo prática säo, entre outros, o culto que prestamos a Deus, o ensino religioso que prometemos dar aos nossos filhos, a tarefa de pregar o Evangelho e de cuidar dos necessitados da comunidade. E esse trabalho só pode ser realizado com a contribuicäo regular dos membros, pois nem todas as tarefas podem ser realizadas somente com trabalho voluntário. Há necessidade de pessoas que se dediquem para além do que é trabalho voluntário, a fim de que as atividades da Igreja possam ser realizadas de forma adequada. A subsistência de pastores e pastoras näo é a única finalidade do dízimo, ou seja, da contribuicäo regular. O dízimo também sustenta toda a missäo da igreja, desde a realizacäo de cultos e o ensino religioso até a manutencäo do templo e os projetos sociais e diaconais da igreja. Sem o dízimo a missão da igreja pode estar ameaçada.
   
Há muitas formas de contribuir: com tempo, talentos e, näo por último, com dinheiro. Importante é não fazer do “dízimo” uma lei no sentido de exigir que cada pessoa ou família contribua com exatamente 10% de sua renda para o trabalho da Igreja. Como cristäos näo podemos ser legalistas. Importante, no entanto, é contribuir regularmente com uma parcela do rendimento, de acordo com as condicöes de cada membro. Cada pessoa deveria poder estabelecer para si a faixa do dízimo adequada à sua sitacäo.
   
Sem dúvida alguma, é extremamente importante organizar, planejar e administrar corretamente o dízimo ou a contribuição regular em nossas igrejas. A realização de uma clara prestação de contas mensal ou anual é de fundamental importância. As pessoas encarregadas de dirigir a comunidade precisam prestar contas do dinheiro que administram e devem fazê-lo com todo zelo e a máxima transparência, sem deixar qualquer margem de dúvida. Não esqueçamos de que quem administra o dinheiro da igreja está administrando doações, contribuições, dízimos de pessoas que entregam este dinheiro à Igreja em sinal de gratidão e reconhecimento de que ao Senhor pertence a terra e tudo o que ela contém.
No ano que se inicia levemos o nosso dízimo ao altar, não buscando, com isso, uma bêncäo pessoal especial como rendimento de nosso investimento financeiro. Levemos o nosso dízimo ao altar com a convicção de que ele será fundamental para a missäo de Deus no lugar em que ele nos colocou. A Ele toda honra e glória!
 
                                                                                                          

                                                         ( Revda Sônia Mota)


Bibliografia

RODOLPHO, Adriano; ESPERANDIO, Mary Rute Gomes e KILPP, Nelson. Verbete- Sacrifício, p. 894-896. In:Dicionário Brasileiro de Teologia. ASTE, São Paulo, 2008.

DREHER, Carlos A. A medida do coração: encontros bíblicos sobre dízimos, ofertas e solidariedade. São Leopoldo: CEBI/CONTEXTO, 2009. Série A Palavra na Vida, n. 260.

ULRICH, Claudete Beise. Dízimo no Antigo Testamento: fidelidade a Deus, princípio de solidariedade e justiça social (texto ainda inédito)