quarta-feira, 7 de março de 2012

8 de março- dia de festa e comemoração ou dia de luta?[1]


“Para a liberdade Cristo nos libertou! Ficai, pois, firmes e não vos curveis de novo sob o jugo da escravidão” ( Gl 5.1)

Introdução

O ano de 1975  foi  adotado pela Organização das Nações Unidas - ONU como Ano Internacional da Mulher. Com isto, pretendeu-se chamar a atenção dos países para as situações de opressão e exclusão vividas pelas mulheres em diferentes partes do mundo. A partir de 1977, a ONU foi mais longe, estabelecendo o dia 8 de março como o Dia Internacional da Mulher. Desde então, essa data é celebrada em todo o mundo tanto de maneira festiva, lembrando as conquistas sociais e econômicas alcançadas pelas mulheres ao longo da história, quanto em forma de protesto, reivindicando novas conquistas e a ampliação das que já foram alcançadas e denunciando formas de opressão que ainda persistem.
No entanto, o que muitas vezes se esquece é que essa história é bem mais antiga. Ela tem ínicio nas lutas das mulheres socialistas que, entre fevereiro e março de 1900, na Rússia, Europa e Estados Unidos, lutavam por  melhores condições de vida e de trabalho. Para tanto, essas mulheres, organizadas em grupos locais ou movimentos de maior amplitude, lideraram greves, manifestações e enfrentamentos. Durante a 1ª Guerra Mundial, em 1917, as mulheres socialistas russas, de acordo com o seu calendário, realizaram, no dia 23 de fevereiro, o Dia da Mulher. No calendário ocidental essa data correspondia ao 8 de março.[2]
Antes disso, dois outros fatos importantes, acontecidos em Nova York, marcaram a história do movimento de libertação das mulheres:
- O primeiro foi uma longa greve de costureiras, que durou de 22 de novembro de 1909 até 15 de fevereiro de 1910;
- o segundo aconteceu em 1911, quando um incêndio, numa fábrica têxtil, devido às péssimas instalações, causou a morte de 146 tecelãs. As portas da fábrica estavam fechadas para que elas não se dispersassem na hora do almoço.
Como se vê, as mulheres conquistaram seu espaço na sociedade com muitas lutas, mortes e prisões. Nada foi fácil! Graças ao esforço e à coragem de mulheres do passado, hoje temos conquistas a celebrar; e que bom que as temos. Por outro lado, alguns índices revelam que ainda temos muito por que lutar. Em certas profissões, mulheres continuam recebendo menores salários que os homens, mesmo quando as funções são as mesmas. Elas seguem acumulando dupla jornada de trabalho, já que muitas trabalhadoras, ao voltar da jornada de trabalho, ainda precisam realizar as atividades domésticas, por não contarem com a parceria dos seus companheiros. São muitas as situações em que a mulher precisa faltar ao trabalho para acompanhar os filhos ao médico ou a reuniões de escola. Isso indica que a noção de paternidade e maternidade ainda preserva resquícios patriarcais, cabendo à mulher a tarefa do cuidado.
A dignidade e a garantia de direitos para as mulheres ainda estão longe de serem plenas. Ainda há muito a superar. Aqui, no entanto, nos restringiremos a abordar algumas questões relacionadas com a violência doméstica contra as mulheres. Essa talvez seja uma das questões que mais evidenciem a continuidade da influência do patriarcalismo, mesmo na sociedade do século XXI. Além de apresentar alguns dados e experiências relacionadas com esse tema, queremos dar algumas sugestões de como as igrejas podem contribuir para transformar essa situação.

Dados da realidade
Quando moramos em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, tivemos o privilégio de trabalhar com as Promotoras Legais Populares- PLPs, capacitadas pelo Centro Ecumênico de Capacitação e Assessoria – CECA. Essas mulheres estão geralmente engajadas em algum movimento popular; algumas são líderes de comunidades eclesiais. Para realizar o trabalho voluntário de PLP, essas mulheres recebem uma formação em direitos humanos, especialmente em direitos das mulheres e legislação. Depois dessa formação, atuam na prevenção à violência doméstica e no acompanhamento de pessoas que sofrem esse tipo de violência.
Muitas PLPs são oriundas de igrejas, onde desenvolvem trabalhos junto a grupos de  mulheres. Na medida em que recebiam a capacitação no curso de PLPs, começaram a apontar algumas questões intrigantes relacionadas à participação das mulheres nas igrejas. Elas apontavam aspectos como:
- Em muitas igrejas, as mulheres ainda sofrem discriminação. Embora, na maioria das comunidades eclesiásticas, as mulheres participem em maior número do que homens, sua atuação é direcionada para trabalhos de limpeza, arrumação, campanhas para angariar recursos. Além disso, são incentivadas a trabalhar com o ensino e a catequese. Apesar da disposição das mulheres de trabalhar comunitariamente, ainda lhes é negada a ordenação, em certas igrejas. Em igrejas que ordenam mulheres, os salários de pastoras são, muitas vezes, inferiores aos salários dos colegas pastores, pois existe a compreensão de que o salário da mulher é meramente “complementar”. Em outros casos, os trabalhos pastorais de tempo parcial são destinados a pastoras, reproduzindo a lógica de que o provedor é o marido, sendo, portanto, ele quem deve receber o salário maior.
- Constataram também o despreparo de lideranças eclesiásticas (pastores, padres e até mesmo pastoras) para lidar com uma mulher em situação de violência. Em muitos casos, o discurso utilizado é o de que cabe à mulher garantir a unidade da família. Por isto a liderança aconselha que a mulher seja compreensiva com o seu companheiro, se esforce para ser boa esposa e boa mãe, mesmo que, em alguns casos, isso signifique suportar diversas formas de violência.

As observações das PLPs não são meras constatações ocasionais, mas refletem a situação atual da violência contra as mulheres nos seus mais variados aspectos: doméstica, física, sexual, psicológica, econômica, moral e institucional. Seguem alguns dados estatísticos:

- Segundo a Organização Mundial de Saúde, a violência é a maior causa de morte de mulheres entre 16 e 44 anos. [3]
- Segundo dados do Conselho Europeu, divulgado pela Anistia Internacional, a violência doméstica é a principal causa de morte e deficiência entre mulheres de 16 a 44 anos; ela mata mais do que câncer e acidentes de trânsito.[4]
- No Brasil,  2,1 milhões de mulheres são espancadas por ano, 5.800 por dia, 243 por hora, quatro por minuto e uma a cada 15 segundos.[5]

Onde estão essas mulheres? Quem são elas? Nossa tendência é imaginar que são mulheres muito distantes de nós. Lembramos de alguns casos que vimos pela televisão e podemos até citar alguns nomes. Mas os dados estatísticos nos levam a ter que admitir que muitas delas estão sentadas nos bancos das nossas igrejas, escondendo a mancha roxa do braço, inventando uma desculpa para o olho machucado ou escondendo hematomas, cicatrizes e tristezas com maquiagem forte, sentindo terríveis dores de cabeça e sofrendo de insônia. Estão  doentes  de corpo e de alma e estão pedindo socorro em silêncio.
Diante disso, é importante perguntar: as igrejas podem ajudar a romper esse ciclo de violência? Como se pode ajudar? Como se podem romper discursos normativos, conservadores e patriarcais, que, além de ajudar a manter as mulheres em estado de submissão, ainda lhes atribui a culpa?

A postura que as igrejas poderiam assumir diante da violência contra a mulher

A história da Igreja nos revela que a instituição eclesiástica, enquanto organização histórica e politicamente posicionada, muito contribuiu para justificar e legitimar a submissão da mulher ao homem. A Bíblia, infelizmente, foi um dos instrumentos utilizados para esse fim. Muitos textos foram lidos de maneira fundamentalista para legitimar ideologicamente determinadas formas de relações sociais e interpessoais. Ainda hoje, não são raras as reflexões que destacam unilateralmente os textos bíblicos que falam da submissão da mulher ao marido. Esses textos, lidos de maneira descontextualizada e fundamentalista, são utilizados para reforçar a imagem de que uma boa mulher é aquela que se doa e se dedica única e exclusivamente à família. Uma mulher exemplar é aquela  que não tem autonomia nem sonhos nem desejos. Como exemplo dessa afirmação trazemos “Os dez mandamentos da esposa sábia[6]”, escritos por um pastor que não identifica a sua denominação. Cada preceito é fundamentado com versículos bíblicos. Segundo esse “decálogo”, cabe à esposa:
1.      Ser sempre zelosa (Pv 31.27);
2.      Estar sempre pronta para receber o esposo (Pv 18.22);
3.      Dar honra ao esposo (Ec 1.20 [Sic!] Pv 31.23);
4.      Ser sempre econômica (Pv 14.1);
5.      Sempre mostrar um sorriso confiante (Pv 31.11);
6.      Sempre conhecer o orçamento do esposo (Pv 31.27);
7.      Sempre revelar ao marido os fatos do dia (1 Tm 3.11);
8.      Na ausência do marido, não assumir nenhum compromisso (Pv 31.11 -12);
9.      Na medida do possível, fazer a refeição que o esposo gosta (Gn 27.4);
10.  Sempre compreender o seu esposo, ainda que ele tenha algumas falhas (Pv 31.28-29).
Porém, se, por um lado, há textos utilizados para legitimar e reafirmar a submissão da mulher, existem, por outro lado, muitos textos bíblicos que mostram como Deus agiu na história para libertar mulheres e homens de situações de opressão e de morte, como no caso da mulher adúltera (João 8.1-11) e da cura de uma jovem adivinhadora explorada pelos patrões (At 16,16-18). Por outro lado, há inúmeras histórias de mulheres que exerceram papel de liderança, por exemplo, no Antigo Testamento, as parteiras do Egito (Ex 1.15-22), Zípora (Ex 4,24-26), a profetisa Débora (Jz 5s), as filhas de Zelofeade (Nm 27), e, no Novo Testamento, entre outras, as histórias de Lídia, a primeira pessoa com quem o apóstolo Paulo entrou em contato na Macedônia e que abrigou em sua casa a primeira comunidade paulina em solo europeu (At 16.11-15,40),  e de Priscila, que, com seu marido, fez o trabalho de edificação da comunidade de Éfeso (At 18.18-19,26).
A partir disso, conclui-se que a primeira atitude das igrejas com vistas a contribuir para a superação da violência contra a mulher é a de revisar e atualizar sua teologia para detectar discursos e linguagens patriarcais e sexistas.
Um segundo aspecto a considerar é que, mesmo quando igrejas ordenam mulheres ao pastorado, as pastoras nem sempre têm as mesmas condições de trabalho que seus colegas pastores. Há pastoras que receberam, de suas igrejas, propostas para o exercício de um “pastorado voluntário”, já que, por serem casadas, poderiam abrir mão de seu salário de obreira. Em alguns casos, a ordenação de mulheres é utilizada apenas para mostrar quão aberta é uma igreja.
Em terceiro lugar, deve-se começar a tornar públicos os casos de violência que acontecem em nossa volta. Lembremos de Tamar, que, após ser violentada pelo irmão, rasgou suas vestes e colocou as mãos na cabeça em sinal de luto e saiu gritando para desmascarar o filho do rei e tornar pública a sua vergonha (2Sm 13.19). Deve-se acabar com a ilusão de que matrimônio cristão é um matrimônio perfeito. Também matrimônios cristãos estão sujeitos ao pecado e somente a confissão do pecado pode conduzir ao perdão e à reconciliação.
Básico é reconhecer que todo e qualquer tipo de violência é um atentado contra a dignidade humana e um insulto contra Deus, pois também a mulher é “imagem de Deus”.

Seguem algumas dicas práticas para as comunidades:
n  Oferecer espaços seguros onde mulheres que sofrem violência possam buscar apoio, acolhida e orientação;
n  Criar espaços educativos sobre prevenção e combate à violência de gênero;
n  Fazer parceria com organizações que trabalham  contra a violência de gênero;
n  Capacitar sua liderança através de estudos da temática da violência sexista sob a ótica das diversas abordagens, bíblica, teológica, antropológica e sociológica;
n  Não permitir o uso de textos ou linguagem que legitimem qualquer tipo de violência contra a mulher;
n  “Meter a colher” sempre que estiver diante de qualquer tipo de violência;
n  Participar de espaços de discussão ou reflexão sobre a questão;
n  Conhecer organizações de atendimento e apoio a pessoas em situação de violência;
n  Conhecer e divulgar a rede de serviços do município que atendem mulheres que sofrem violência;
n  Encaminhar e se preciso  acompanhar vítimas de violência para que façam a denúncia

As igrejas podem fazer muito mais do que “orar”. “Orar é importante porque conforta e a gente não se sente tão sozinha”, dizia uma das PLPs. Mas oração e ação precisam andar de mãos dadas, como na parábola de Jesus sobre o exemplo da viúva que incomodou tanto o juiz até que sua causa fosse julgada (Lc 18.1-8).

Embora a sociedade de consumo queira transformar o dia 8 de março em data comemorativa para poder vender flores e perfumes e encher restaurantes para jantares comemorativos, este dia continua sendo, para nós, um dia de luta, reivindicação e reflexão. Embora tenhamos conquistado espaços importantes na sociedade e ocupemos alguns cargos de importância também na igreja, os dados estatísticos falam por si: ainda há muitas mulheres expostas a todo tipo de violência, ainda há mulheres sendo oprimidas e homens achando que mulheres são propriedades, e lamentavelmente muitas religiões continuam ensinando que as mulheres devem ser submissas a seus pais, irmãos e maridos. Enquanto perdurar  essa situação, o 8 de março será também um dia de protesto e sinal de continuidade de nossa luta!

                                    Sônia Gomes Mota- Pastora da IPU
                                    Romi Márcia Bencke- Pastora da IECLB


DISQUE 180 e denuncie qualquer tipo de violência contra a mulher. A ligação é gratuita e pode ser feita de forma anônima!

Bibliografia

- Autores diversos. A Bíblia e as mulheres. Série A Palavra na Vida, nº 16, CEBI, 1989.
- BENCKE, Romi; CORNAGLIA, Graciela, MOTA, Sônia; VIAU, Sandra. Tramando contra a violência de Gênero. CECA. São Leopoldo, 2007.
- CORNAGLIA, Graciela Patrícia. Org. Cartilha de Prevenção à violência contra as mulheres. CECA,  São Leopoldo, 2010
- FEDERAÇÂO LUTERANA MUNDIAL. As igrejas dizem não à violência contra a mulher. Departamento de Missão e Desenvolvimento. - Mulher na Igreja e Sociedade. 2002
- PEREIRA, Nancy Cardoso. Maria vai com as outras- mulheres libertárias libertadoras da Bíblia. Série A Palavra na Vida, nº 114, CEBI,  São Leopoldo, 1997
_______________________. Remover pedras, plantar roseiras, fazer doces. Por um ecossocialismo feminista. CEBI, São Leopoldo,  2009
de Souza, Sandra Duarte. Org. Gênero e Religiões no Brasil: ensaios feministas. UMESP, São bernrdo do Campo, 2006.


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[1] Este texto foi escrito a partir do subsídio de formação para Igrejas e Seminários intitulado: Tramando contra a violência de Gênero nas Igrejas”  desenvolvido pelo CECA – Centro Ecumênico de Capacitação e Assessoria.   
[2] Nancy Cardoso Pereira. Remover Pedras, plantar roseiras, fazer doces- por um ecossocialismo feminista. Pg.7
[3] OMS. Informe sobre Violência e Saúde 2002. disponível em HTTP://copodeleite.rits.org.br/apc-aa-patriciagalvao/home/dadospesquisas.shtml

[4] Relatório da Anistia Internacional disponível em: http://cozinhadamatilde.com.br/2009/11/longa-vida-a-las-mariposas/
[5] Fundação Perseu Abramo. Violência contra a mulher, disponível em http/200.130.7.5/spmu/docs/pesq_violênciacontraamulher.pdf