quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Um homem de Deus

Existe um profeta no Antigo Testamento que, com fre­quên­cia, é chamado de “homem de Deus”. Trata-se de Eliseu (“Deus ajuda”). Certamente o povo via em suas ações a manifestação da vontade de Deus. Isso se mostra nos relatos que o povo contava sobre Eliseu (especialmente em 2 Reis 4-8): eles procuram enaltecer sua figura, atribuindo-lhe diversas curas e milagres.
Eliseu foi vocacionado enquanto lavrava o campo com uma junta de bois. Antes de seguir seu mestre – Elias –, “tomou a junta de bois e os imolou e, com os aparelhos dos bois, cozeu as carnes e as deu ao povo e comeram” (1 Reis 19.21). Ao matar os bois e queimar a madeira do arado para fazer uma refeição para seus familiares, Eliseu marca o fim de uma vida estável para seguir sua vocação. Como líder espiritual de um grupo de profetas, seus discípulos, restava confiar no auxílio divino.
Esse homem de Deus identificava-se com o povo simples. As narrativas bíblicas contam como ele se ocupava com as necessidades básicas do povo: ele torna saudáveis as águas da fonte de Jericó, garantindo as colheitas e a sobrevivência do povo (2 Reis 2.19-22); aumenta o azeite de uma viúva pobre, evitando que seus filhos fossem vendidos como escravos para pagar as dívidas; restitui a vida do único filho de um casal (2 Reis 4); recupera o machado que um discípulo – por ser pobre – havia pedido por empréstimo e que caíra no rio Jordão, garantindo, assim, o seu ganha-pão (2 Reis 6.1-7); ou neutraliza as toxinas que se encontram nas colocíntidas, que, por descuido, vieram parar no sopão comunitário (2 Reis 4.38-41).
Ilustração João Soares
Eliseu também defende diante do rei a devolução de uma propriedade que esse havia tomado de sua legítima proprietária (2 Reis 8.1-6). Todas essas histórias mostram como Eliseu se engaja pelos direitos elementares do povo: alimentação sadia, água pura, liberdade, possibilidade de trabalho, justiça e vida.
Para proporcionar vida a todos, Eliseu sabia que o segredo era partilhar o pouco que se tem. Quando alguém lhe trouxe vinte pães de cevada e alguns grãos tostados do cereal, ele mandou distribuí-los entre o povo, umas cem pessoas, “porque assim diz o Senhor: Comerão e sobrará” (2 Reis 4.43s). Apesar de ter angariado fama, sempre fora uma pessoa simples e não se deixou levar pela ambição da riqueza. Não aceitou, por exemplo, os ricos presentes de um alto funcionário estrangeiro que havia curado da lepra (2 Reis 5).
Esse homem de Deus também propõe uma nova política internacional, como mostra a história de 2 Reis 6.8-23. Numa época de conflitos armados com os vizinhos de Israel, os arameus ou sírios, Eliseu sempre previa onde os sírios estavam emboscados e avisava os israelitas para evitar o confronto. Quando descobriram isso, os sírios tentaram prendê-lo, mas não conseguiram porque, conforme o texto, a tropa que buscava o profeta foi ferida de cegueira (6.18) e levada pelo próprio homem de Deus à capital de Israel.
Então seus olhos se abriram e viram que eram prisioneiros do rei inimigo. Esse quer matar os inimigos, mas Eliseu tem outra proposta: “Não os ferirás … Manda colocar diante deles pão e água para que comam e bebam e voltem a seu senhor”. E assim se fez. A história diz que os soldados sírios comeram, beberam e voltaram para casa e conclui assim: “Da parte da Síria não houve mais investidas contra a terra de Israel”. O respeito com os prisioneiros de guerra teve o efeito desejado: voltou a reinar paz entre os povos. A narrativa mostra que quem está profundamente preocupado com as necessidades básicas do povo também pode contribuir para resolver de modo pacífico um conflito internacional.

* Nelson Kilpp  é pastor  da IECLB, especialista em Antigo Testamento. Texto cedido pelo  autor publicado na Revista Novo Olhar da Editora Sinodal nº 36..

Formação de lideranças para o bom uso dos dons

“Igreja reformada, sempre se reformando”, este foi e continua sendo o lema mais conhecido e repetido da Reforma Protestante. Inspirado nele, as igrejas vêm procurando atualizar os seus posicionamentos teológicos diante dos diversos desafios que o mundo nos traz com todas as suas inquietações e rápidas transformações. Atualizar os posicionamentos teológicos adaptando-os às exigencias de um mundo em constante mudança é tão importante quanto preparar pessoas para que a igreja possa cumprir a sua obra missionária.  Mas  parece que, para algumas pessoas, o famoso “Sempre se reformando” se restringe às questões teológicas. Porém, o caminhar da Igreja exige constante reforma também em outras áreas. A formação de liderança é uma delas.
Para além das escolas dominicais, das celebrações de domingo, dos cultos de oração, das reuniões de estudo bíblico, de que modo a igreja se estrutura para realizar a missão que lhe foi confiada?  Uma igreja que quer realizar bem a sua missão, não pode achar que basta trabalhar no improviso nem pode contar apenas com a “boa vontade “ das pessoas. A missão de Deus exige mais; ela necessita de envolvimento, organização, preparo e paixão pelo trabalho.
O sacerdócio universal de todos os crentes, um dos pilares da reforma protestante, muitas vezes se confundiu com a “capacidade de todo e toda crente para assumir qualquer trabalho na igreja”. Diante disto, algumas pessoas assumem tantas coisas que acabam num ativismo desenfreado. De outro lado, há pessoas assumem tarefas para as quais não estão preparadas. Ainda outras se afastam ou tornam-se meras expectadoras, correndo o risco de serem vistas como relapsas, por “esconderem o talento”. É verdade que cada cristão e cristã recebe dons do Espírito Santo para a edificação da igreja e para a contribuição na missão de Cristo (cf. 1Co 12,7). Estes dons, concedidos com a finalidade de promover o bem comum, nos impõem obrigações e responsabilidades em todos os níveis de nossa existência. Mas eles precisam ser despertados, preparados e bem coordenados para que possam reverter em benefício coletivo.
Os textos bíblicos que tratam do tema, tanto no Antigo como no Novo Testamento, deixam claro que a missão é obra de Deus - é Ele quem convoca, chama, envia e sustenta. Porém, isto não significa que a Igreja não precisa fazer a sua parte. Quando a Igreja aceita ser instrumento nas mãos de Deus, ela se coloca a serviço do agir de Deus. De nossa parte se exige, portanto, uma resposta e um compromisso. Mas nada acontece como um passe de mágica. Os dons presentes nos membros da Igreja precisam ser despertados, preparados, organizados e motivados.  Vamos ver alguns exemplos!

Despertar para o trabalho: Êx 3 e 4,1-17; Is 6,1-8; Jo 4,1-39

Ao serem desafiadas para realizar um trabalho, muitas pessoas certamente vão elencar  diversas dificuldades pessoais para fugir dele, assim como fez Moisés. Outras, como Isaías, vão, de imediato, disponibilizar-se para o trabalho, mesmo que isso implique sofrimento e posterior arrependimento. Outras pessoas, como a samaritana, farão um longo debate argumentativo, mas ao serem convencidas, “largarão” o cântaro”, ou seja, romperäo barreiras  e convenções sociais e se colocarão a serviço. A resposta que Deus sempre espera das pessoas quando as chama para realizar um trabalho é a FÉ.  E, como cantou o poeta Gilberto Gil, “ a fé não costuma falhar”.

Preparar para o trabalho: Mc  6, 7-13; Lc 10,1-12

Os textos dos evangelistas nos mostram como o trabalho para a atuação do discipulado era organizado. Davam-se instruções sobre como enfrentar os problemas que se apresentavam,   naquela época, e colocavam-se diretrizes de como o grupo deveria agir. Percebemos que Jesus não apenas chamava e enviava, mas ele também dava instruções para que a ação dos seus seguidores e seguidoras se tornasse eficaz.

Distribuir e coordenar o trabalho: Êx 18.13-26; Mc 14, 12-16; Lc 8,1-3

O texto de Êxodo nos dá dois exemplos de liderança: o  primeiro exemplo nos apresenta uma líder centralizador, cuja lideranca prejudica e emperra o trabalho, além de sobrecarregar quem lidera. O segundo exemplo mostra que é possível distribuir tarefas de modo a descentralizar as decisões e a facilitar e agilizar a resolução de problemas, para benefício de todas as partes.
Os textos de Marcos e Lucas nos mostram que, também no grupo de discípulos e discípulas, existiam pessoas que se ocupavam com diferentes tarefas.

Motivar para o trabalho: Ex 14,11-16; 1 Rs 19, 1-13; Lc 5,1-11; Mt 28,1-10

Conta-se que, certa vez, o reformador Martim Lutero estava bastante deprimido com toda a situação desencadeada pela reforma da Igreja. Questionava-se se a atitude que havia tomado era ou não da vontade de Deus, afinal, estava havendo muitas desavenças, desentendimentos e lutas. Diante dessa situação de dúvida e incerteza, ele deixava de se alimentar e passava os dias trancado no quarto. Então, sua esposa e companheira de diálogo, Katharina von Bora, resolveu tomar uma atitude, pois não aguentava mais ver o marido naquele estado de prostração. Ela se vestiu toda de preto e foi vê-lo no quarto. Lutero levou um grande susto e perguntou se alguém havia morrido, ao que Katharina respondeu: “Parece que o teu Deus morreu!” A este tratamento de choque Lutero reagiu, saiu do quarto e retomou as suas atividades.  
Os textos bíblicos citados mostram que, nas nossas atividades na igreja, sempre haverá medo, dúvidas, desânimo e frustração. Por isso, é importante saber motivar as pessoas para que não esmoreçam, mas continuem na direção prevista (Ex 14,16);  é importante ouvir as queixas das pessoas que trabalham na igreja e incentivá-las a que não desistam (1Rs 19, 13; Lc 5,3-5); é importante saber que não estamos sós e ter alguém para nos ajudar a elaborar uma nova estratégia de ação quando for preciso (Mt 28,9-10).
O trabalho é árduo e precisa ser feito com seriedade e sem “fugas”. Improvisações mostram a capacidade de pessoas de adaptar-se a situações imprevistas e podem funcionar por um certo tempo, mas o recurso constante à improvisação revela descaso e falta de seriedade no trabalho.
Deus capacita pessoas. E, sem dúvida, nos bancos das nossas igrejas existem profissionais de diversas áreas com capacidade de contribuir, e muito, para melhor organizar e potencializar a igreja, a fim de que ela cumpra o papel para a qual foi chamada. É importante saber que “líder” não é sinônimo de “pastor ou pastora”. Pode haver pastores/as e presbíteros/as líderes, mas também pode ser que eles ou elas não o sejam. Neste caso, mister se faz buscar a liderança em outras pessoas da igreja, respeitando a vocação e as habilidades existentes.
Deus, como  bom artesão (Gn 2,7),  lapida, capacita, molda e desperta pessoas para serem suas parceiras de trabalho. Precisamos descobrir, incentivar e dar espaço para que as pessoas possam desenvolver e colocar-se a serviço da obra que Deus nos convida a realizar com e  para ele.

                                                        Revda.  Sônia Gomes Mota


BIBLIOGRAFIA

Conselho Mundial de Igrejas. Natureza e missão da Igreja: um passo rumo a uma declaração conjunta. Traduzido por Nelson Kilpp. Säo Leopoldo: Editora Sinodal; São Paulo: Paulinas, 2009.

 McKIM, Donald K. A “Vocação” na Tradição Reformada. In: Donald K. McKim (editor) Grandes Temas da Tradicäo Reformada. São Paulo: Associação Evangélica Literária Pendão Real, 1998.