Liturgia
combina com arte, beleza e mistério.
Uma
parte nós fazemos e a outra nos é dada.
Não
quero um Deus que compreenda,
que
seja do tamanho do meu pensamento.
Quero
um Deus maior.
Um
Deus em que possa acreditar
mesmo
sem entender...
(Rubem
Alves)
Quero começar este artigo compartilhando uma conversa que tive, há algum
tempo, com um amigo que estava fazendo um curso de liturgia. Lá pelas tantas,
ele fez o seguinte comentário:
-
Sabe o que eu descobri? Que o símbolo litúrgico mais usado pela minha
igreja é a samambaia, ela está não só no altar como também espalhada por todo o
templo e é ela só, nada mais.
Rimos bastante imaginando a tal samambaia “simbológica”. Mas depois
fiquei refletindo sobre o comentário e fui obrigada a reconhecer que, em muitas
de nossas igrejas, a situação não é diferente.
Antes de continuar a leitura, convido você a um exercício: feche os
olhos e relembre o altar da sua igreja, o que tem lá? Qual ou quais os símbolos
cristãos que estão no altar simbolizando uma experiência com o sagrado?
Pessoalmente consigo visualizar diversas igrejas que não têm símbolo
cristão nenhum. Só paredes vazias, o púlpito, a mesa com uma toalha, na maioria
das vezes branca, sem nenhum adorno litúrgico e um vaso de flores, que, a
princípio, não é símbolo, mas objeto de decoração.
Quando exercia o pastorado em comunidade, algumas
vezes fui criticada e questionada por usar veste pastoral, paramentos
litúrgicos e colocar velas no altar. Algumas pessoas, talvez por não compreenderem
o seu significado, achavam que eu estava me aproximando demais dos “católicos”,
como se esses paramentos fossem exclusividade da Igreja Romana. Interessante é
que se tolera que um pastor vista terno e gravata, roupas típicas de
banqueiros, empresários e executivos, e que uma pastora use roupas da moda, mas
têm-se dificuldades de aceitar o uso de vestes pastorais. Assim como os médicos
são reconhecidos pelos jalecos brancos e os juízes, nos tribunais, por suas
togas, as vestes pastorais querem lembrar a função de quem as utiliza.
A Bíblia afirma que Jesus é “a luz do mundo”. Não
podemos ter uma vela simbolizando esta luz? Pregamos sobre a cruz de Cristo e o
seu significado, a cruz está presente em muitos hinos. Não podemos colocá-la no
altar das igrejas?
Fico pensando por que existe essa aversão aos símbolos cristãos e tenho duas
suspeitas. Gostaria de abordá-las rapidamente.
Iconoclastia – uma triste herança
A reforma protestante não foi um movimento uniforme; os reformadores, às
vezes, também tinham divergências. Alguns
grupos da Reforma protestante achavam que todas as imagens tinham
que ser destruídas por afrontarem a Deus (cf. Êx 20.4-6). Eles invadiam,
portanto, os templos para destruir e queimar imagens, esculturas, quebrando
vitrais e causando uma das maiores destruições de arte sacra que a história já
testemunhou. Chamamos esses radicais de iconoclastas.
É certo que os Reformadores concordavam que havia muitos abusos nos
cultos de sua época, mas eles assumiram posturas
diferentes diante de certas tradições: Lutero, por
exemplo, defendia que se deveria manter
o que não fosse explicitamente condenado pelas Escrituras. Já Calvino queria
que se mantivesse apenas o que era ordenado por Deus nas Escrituras. Em
relação aos símbolos litúrgicos, Lutero teve, portanto, uma postura mais
compreensiva, pois via neles um importante recurso pedagógico. As imagens
ajudavam a divulgar o Evangelho, em especial, a analfabetos. Calvino, por outro
lado, aboliu a simbologia nos templos reformados, de modo que o culto
calvinista tornou-se um “culto nu”.
Em uma das minhas visitas a uma Igreja Reformada, aqui na Alemanha, uma
professora de Escola Dominical para crianças comentou que foi chamada pelo
presbitério porque, depois de contar a história de Noé, solicitou às crianças desenharem
a cena. Isso foi considerado perigoso, pois, segundo o conselho, as crianças
poderiam incorrer na tentação de também desenharem Deus, o que iria contra a
proibição de imagens. A professora também não podia utilizar imagens como recursos
visuais. Fico pensando a dificuldade dessa professora para transmitir um
conhecimento às crianças sem poder usar nenhum recurso visual. Hoje sabemos que
a proibição de imagens no Antigo Testamento surgiu, em primeiro ligar, porque
as imagens eram adoradas em lugar do Deus vivo e, em segundo lugar, porque elas
eram utilizadas em rituais mágicos, na tentativa de manipular Deus.
O momento histórico da Reforma protestante do século XVI suscitou também
posturas e atitudes radicais. O princípio do sola scriptura (“somente pela Escritura”) lamentavelmente foi
interpretado por alguns como “somente pelo discurso”, levando ao desprezo de
diversos símbolos que nos ajudam a lembrar os elementos importantes da nossa
fé.
Protestantismo brasileiro – religião proibida
A segunda suspeita tem a ver com a história do protestantismo no Brasil.
As igrejas protestantes brasileiras precisaram de muito tempo para ter sua
liberdade de culto. A primeira constituição brasileira de 1824 permitia apenas o
culto doméstico ou em casas sem nenhuma forma ou característica de templo, como
sino, torre, etc. Somente com a
constituição de 1891 é que se pode falar de uma liberdade de culto, quando os
protestantes não mais precisavam se esconder.
Seria esta uma herança que trazemos até hoje e que nos faz ser tão
descuidados com o aspecto simbólico dos nossos templos? Talvez nos tenhamos
acostumado com as proibições da época do Império e continuamos evitando que
nosso templo tenha aparência de templo.
A linguagem dos símbolos
Quando as palavras não são suficientes para expressar tudo o que
sentimos ou estamos vivenciando, a poesia, a metáfora, os símbolos são
excelentes auxílios. O símbolo é uma realidade visível que representa ou está
em lugar de uma realidade invisível. Ele não é sujeito nem objeto, ele apenas
remete a uma experiência e deve fortalecer crenças e práticas. Ele é elemento
essencial no processo de comunicação.
Em épocas antigas, o símbolo era essencial para o processo de
aprendizado da fé. Imaginem as pessoas que não sabiam ler, o quanto a experiência
visual com vitrais e imagens bíblicas era importante para reter a mensagem que
estava sendo pregada.
O teólogo Paul Tillich escreveu: “Se o símbolo perde o seu poder, a
religião perde a sua inspiração”. Penso que Tillich não queria afirmar que a religião
se reduz aos símbolos, mas destacar a grande importância destes para a vida de
fé.
Um símbolo aponta para além de si, revelando aquilo que ele representa. Uma
cruz é mais do que mera cruz; ela rememora o sacrifício de Cristo por nós. A
cruz no altar não é um ídolo, mas um
símbolo que aponta para aquele que por nós sofreu e morreu na cruz. E esse
símbolo pode fortalecer a nossa fé.
Deus fala conosco através da sua Palavra, dos sacramentos, de cânticos,
gestos (bênção, abraço da paz) e também através de símbolos que ajudam a fortalecer
as nossas crenças e práticas.
O próprio Jesus recorreu a símbolos quando queria explicar algo ao povo
que o seguia: ele falava dos lírios do campo para falar da providência divina
(Mt 6.25-34), da ovelha e do pastor para falar do cuidado de Deus (Jo 10.1-18)
e escolheu o pão e o vinho como símbolos do seu corpo e sangue (Lc 22.19-23).
Os símbolos - uma riqueza
litúrgica
Se o calendário cívico comemora os feitos humanos, o calendário do ano
cristão aponta a para atividade criativa e redentora de Deus.
As cores litúrgicas, que podem estar presentes nas vestes
pastorais, nas vestes do coral, nas toalhas de mesa e nos antepêndios do
púlpito ou da estante de leitura, simbolizam as diferentes épocas do ano
cristão. Ao entrar no templo, o povo já pode sentir-se envolvido pelos atos de
Deus na nossa história.
- O branco e o dourado simbolizam a glória e a manifestação divina. Essas cores são usadas para celebrar a obra redentora de Cristo (Natal, Epifania, Batismo do Senhor, Transfiguração do Senhor, Páscoa, Ascensão do Senhor e Trindade).
- O vermelho, símbolo do fogo e dos mártires, é cor da celebração do Espírito Santo e da Igreja (Pentecostes, Dia da Reforma, Aniversário da Igreja, Ordenação e investidura de pastores e pastoras).
- O roxo caracteriza as épocas do ano cristão dedicadas à reflexão, ao arrependimento e à preparação (Advento e Quaresma)
- O preto caracteriza o período de luto (Quarta-Feira de Cinzas e Sexta-Feira da Paixão)
- Verde é a cor da esperança, vida e crescimento (usado ao longo do tempo comum, a época após Epifania e após Pentecostes)
- O azul claro indica a esperança e também pode ser usado no Advento.
Gestos simbólicos:
- Gesto de consagração dos elementos da Santa Ceia (Lc 22.19-23)
- Lava pés ( Jo 13);
- Imposição de mãos (1 Tm 4.14);
- Os braços abertos para transmissão da bênção
- O sinal da cruz representando a Trindade
Objetos simbólicos
- A cruz: aponta para o amor de Deus por nós. É o principal símbolo cristão, pois aponta para a ação salvífica de Deus na história e a possibilidade da ressurreição.
- A água: símbolo do nosso novo nascimento e símbolo da vida.
- A vela: representa a Palavra de Deus ( Sl 119.105); Jesus, a luz do mundo ( Jo 8.12); o Espírito Santo que desceu como labareda de fogo ( At 2.1-4)
- O peixe: um dos primeiros símbolos utilizados pelos cristãos para se identificarem, especialmente na época das perseguições nos primeiros séculos. A expressão “Jesus Cristo, Filho de Deus, o Salvador” em grego é: Iesous Christos Theou Uios Soter. As iniciais dessas cinco palavras formam uma nova: ictus, que significa “peixe” em grego.
- A pomba: o Espírito Santo (Lc 3.21-22)
- A videira e os ramos lembram que, como cristãos e cristãs, estamos ligados a Cristo (Jo 15.5).
- O sepulcro aberto lembra a vitória de Jesus sobre a morte (Jo 20.1)
- As letras “alfa” e “ômega”, respectivamente a primeira e a última do alfabeto grego, indicam que Cristo é o princípio e o fim de todas as coisas e a eternidade de Deus (Ap 1.8)
Se compreendermos
o significado bíblico e teológico dos símbolos, eles não correm o risco de
serem idolatrados, pois saberemos que eles apontam para uma realidade além
deles. São importantes porque têm uma mensagem a transmitir. Por isso também
não podem ser confundidos com objetos de decoração que mudam conforme a moda e
o gosto de quem “decora a igreja”.
Os
símbolos devem, portanto, ser escolhidos com argumentos bíblicos, seguir a
tradição cristã e também espelhar a comunidade local, pois cada igreja está
inserida em um contexto cultural específico.
As
reflexões e sugestões aqui contidas querem servir de “inspiração” e não como
“imposição” ou “padronização”. Cada igreja é livre e soberana, mas em matéria
de símbolos litúrgicos seria bom pensar numa identidade litúrgica para todas as
nossas igrejas, a fim de que, em qualquer igreja local da IPU, se possa
perceber claramente que fazemos parte de uma comunhão maior.
Agora, convido
você a fazer, outra vez, uma visita ao seu templo. O que poderia ser modificado
e inserido nele?
BILIOGRAFIA
ADRIANO, Odete Líber Almeida. Símbolos
na Bíblia. In: BORTOLLETO F., Fernando; SOUZA, José C. de; KILPP, Nelson (ed.) Dicionário Brasileiro de Teologia. ASTE:
São Paulo, 2008.
ALVES, Rubem (org.). CultoArte:
celebrando a vida. Vozes: Petrópolis,
1999.
EMARD, Jeanne. A arte floral a
serviço da liturgia. Paulinas: São Paulo, 1999
Manual do Culto da Igreja Presbiteriana
Independente do Brasil. Pendão
Real: São Paulo [s.d.]
MARTINI, Romeu R. Livro de Culto.
Sinodal: São Leopoldo, 2003.
NOÉ, Sidnei Vilmar. Símbolo. In: BORTOLLETO F., Fernando; SOUZA, José C.
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Brasileiro de Teologia. ASTE: