Confesso que sempre achei muito cansativo e monótono ler os capítulos da Bíblia que contêm genealogias. Aquelas listas intermináveis de nomes, informando quem gerou quem e, raras vezes, “quem pariu quem”. Imagino que muitas pessoas possam ler essas genealogias em busca de algum nome para colocar em uma criança que vai nascer. Mas, se as genealogias estão lá é porque devem ter alguma função. Geralmente se diz que elas têm uma função legitimadora, ou seja, elas buscam legitimar o status social, étnico ou de nobreza de uma pessoa, mostrando que ela descende de ancestrais nobres, ilustres ou pertencentes a uma determinada etnia. As genealogias também mostram que a vida de cada pessoa está inserida dentro de um grande contexto familiar e que tem toda uma história que a determina.
Uma das genealogias que mais chama atenção é a de Jesus. Os evangelistas Mateus e Lucas, que escrevem sobre os ancestrais de Jesus, trazem genealogias distintas. Enquanto Lucas segue a estrutura patrilinear e cita apenas os homens; Mateus, embora também siga a mesma estrutura, inclui o nome de cinco mulheres, o que configura algo incomum. E que mulheres! Tamar, Raab, Rute, Betsabéia e, naturalmente, Maria. Com exceção de Maria, todas essas mulheres são estrangeiras. Além disso, para muitas pessoas, essas mulheres tiveram um comportamento questionável. Afinal, Tamar se vestiu de prostituta e enganou o sogro para com ele ter filhos; Raab é designada expressamente de prostituta; Davi forçou Betsabéia a ter um caso extraconjugal com ele e a engravidou; Rute elaborou, juntamente com a sogra, um plano para reaver seus direitos; e Maria... bem, Maria ficou grávida e o pai da criança não era seu noivo! Que antepassados!!
Mas por que essas mulheres estão na genealogia de Jesus?
Mateus deve ter tido suas razões para introduzir o seu evangelho justamente com essa genealogia. À primeira vista, pode-se afirmar que Mateus tinha duas intenções: em primeiro lugar, ele quer mostrar que, como descendente de Abraão (Mt 1,1), Jesus pertencia ao povo de Israel. Em segundo lugar, como descendente de Davi (Mt 1,6), ele também era o Messias esperado.
E as mulheres? O que elas nos querem revelar? As mulheres não podem ter tido a função de, como mães, garantir a origem judaica da descendência, ou seja: judeu é o nascido de mãe judia, pois das mulheres da genealogia pelo menos três são estrangeiras. Talvez uma rápida olhada na vida dessas mulheres possa nos esclarecer o porquê da sua presença na genealogia de Jesus.
Tamar: Chega de decidirem por ela!
Encontramos a história de Tamar em Gênesis 38. Ela era uma mulher arameia que se casou com Her, o filho mais velho de Judá. Como o esposo morreu sem deixar filhos, ela deveria, de acordo com a lei do levirato (Dt 25), casar com Onã, o irmão mais velho do marido falecido. Mas este derramava, na hora do orgasmo, o sêmen na terra, pois sabia que, se gerasse um filho em Tamar, a criança seria considerada filho de seu irmão falecido, constituindo-se, portanto, em um herdeiro a mais. Também Onã morre. Conforme a lei, agora o terceiro irmão, Sela, deveria desposar Tamar para continuar a descendência do marido falecido. Mas Judá, com medo de perder mais um filho, devolve Tamar para o pai dela.
Tempos depois, ao saber que Judá voltaria a passar pela sua aldeia para tosquiar ovelhas, Tamar elabora um plano para garantir seus direitos e os de seu falecido marido. Ela se disfarça e vai ao encontro de Judá que, pensando tratar-se de uma prostituta, aceita deitar-se com ela. Porém Tamar sabe com quem está lidando; ela precisa precaver-se. Por isso, quando Judá promete pagar os seus serviços com um cabrito, ela lhe pede como penhor o selo, o cordão e o cajado do sogro. Ao enviar o cabrito como pagamento, os homens de Judá não encontraram mais a mulher.
Três meses depois, ao ser informado da gravidez de Tamar, o patriarca Judá exige que ela seja queimada. Pois, conforme a lei, mesmo tendo sido devolvida ao pai, Tamar não podia relacionar-se com outro homem que não da família de seu falecido marido. Mas Tamar se havia precavido e revela que o pai da criança era o dono do selo, do cajado e do cordão. Assim, o fato não se configurava como adultério ou traição. A Judá não restou outra alternativa a não ser reconhecer Farés e Zara, os gêmeos que nasceram daquela gravidez, como filhos de Her.
A atitude de Tamar revela uma mulher corajosa e paciente, que soube lutar contra o descaso e a violência estrutural a que as viúvas eram submetidas na sociedade israelita. Cansada de submeter-se às decisões que outros tomavam sobre a sua vida, ela soube esperar o momento certo para tomar as suas próprias decisões e fazer cumprir a lei.
Raab - a mulher que fez a opção de se aliar à luta pela conquista da terra.
Além de estar presente na genealogia de Jesus, Raab também aparece, juntamente com Sara, em Hebreus 11, como exemplo de heroína da fé. Raab e Sara são as únicas mulheres mencionadas nessa relação do livro de Hebreus.
Como ainda acontece hoje, na época, a prostituição era exercida por mulheres que precisavam ganhar o seu sustento. Em geral, a sociedade aceitava essa profissão. A profissão não era regulada por códigos legais ou morais. Às vezes, prostitutas dividiam uma mesma moradia. Além disso, era comum que prostitutas também oferecessem serviço de hotelaria. Compreende-se, então, por que os espias de Israel buscaram pouso na casa de Raab, em Jericó (Js 2,2).
Além disso, o texto afirma que a casa estava construída na muralha da cidade e possuía um terraço, a partir do qual se podia observar bem a movimentação dos que entravam e saíam da cidade. Em nenhum momento se diz que Raab foi obrigada a ajudar os espias; ela faz a opção de ajudá-los. Não só os escondeu, mas também arriscou sua vida ao mentir para o rei dizendo não saber onde os homens haviam ido. Raab adere, portanto, ao projeto israelita de tomar a terra, confessa que Javé é o mais poderoso dos deuses e pede proteção para a sua família. O cordão escarlate torna-se o símbolo do acordo entre Raab e os espias israelitas; é ele que vai proteger a família dela por ocasião da invasão. Esse símbolo lembra o sangue do cordeiro pintado nas portas dos israelitas, que protegeu, no Egito, o povo de Israel da morte. Graças à sua independência, Raab pôde ajudar os israelitas a concretizar o projeto de conquista da terra.
Rute - a sabedoria de mulheres para defender a vida dos pobres.
A moabita Rute teve um papel tão importante na história de Israel que, mesmo sendo estrangeira, recebeu um livro com seu nome. Mulher, estrangeira, viúva e pobre - essa era Rute. A sua história começa em Moabe, um país vizinho de Israel, onde vivia e onde se casou com um israelita, que, juntamente com o pai, a mãe e um irmão, imigrara para aquelas terras por causa de estiagem e fome na pátria. Mas a morte bateu na porta daquela família e todos os homens morreram, deixando três viúvas, pobres e sem herdeiros. Noemi retorna, então, a Belém e leva consigo a sua nora Rute. Inicia aí uma história de grande sabedoria e perspicácia, na qual duas mulheres sozinhas vão ser obrigadas a lutar para ter seus direitos respeitados. Sem ter como garantir o sustento, já que os homens da “pequena família” estavam mortos, Rute vai juntar os restos da colheita nas terras de um agricultor de posses, parente de seu falecido marido. Conforme a lei da respiga (Lv 19,9-10; Dt 24,19), os pobres, estrangeiros, órfãos e as viúvas tinham o direito de colher das espigas que caíssem na ceifa. Rute cabia em três dessas categorias de pessoas: estrangeira, viúva e pobre.
Ao tomar conhecimento de que a estrangeira que respigava em seu campo era parente, o dono da terra, Booz, lhe dá permissão para respigar com liberdade e ficar junto com suas servas. Ao ficar sabendo que Boaz era parente de seu marido, Noemi começa a articular um plano para que Rute seja resgatada. De acordo com a lei do levirato (Dt 25,5-10), o parente mais próximo do marido falecido de Rute deveria, como no caso de Tamar, casar com a viúva e com ela gerar descendência para o falecido. Além disso, caso nascesse um filho desse relacionamento, a viúva teria novamente direito aos bens imóveis do falecido marido.
Instruída por Noemi, Rute toma banho, se perfuma e vai deitar-se onde Booz está e com ele passa a noite. Na manhã seguinte, ela revela a Booz que ele tem sobre ela o direito de resgate. Booz juntou, então, testemunhas e procurou um parente ainda mais próximo do falecido marido de Rute para saber se tinha interesse em cumprir a lei do resgate da viúva. Como esse parente não tinha interesse ou vontade para cumprir a lei, o próprio Booz assumiu a tarefa e se casou com Rute por quem já havia mostrado claro interesse, quem sabe ultrapassando o simples “cumprimento do dever”. Rute foi, então, recebida pelo povo da cidade de Belém como as matriarcas Raquel e Lia (Rt 4,11). Com Booz teve um filho, Obede (“o que serve”), que viria a ser o avô de Davi.
Betsabeia - a mulher violentada pelo rei
Betsabeia não é mencionada, na genealogia de Mateus, pelo seu nome, mas como “esposa do hitita Urias”. É a única mulher da genealogia que viveu no âmbito da corte; mas nem por isto deixou de sofrer com a prepotência real. Sua história é contada em 2 Sm 11, onde se narra como ela foi vítima da falta de escrúpulos de Davi, que, possuído por desejo e cobiça, a violentou e engravidou enquanto seu marido estava na batalha defendendo Israel. Após saber da gravidez de Betsabeia, Davi articulou a execução de Urias na frente de batalha. Denunciado por Natã, que não o perdoou por esse ato criminoso, Davi mandou buscar Betsabeia para que viesse morar no palácio. Ela perdeu o primeiro filho, mas depois deu à luz Salomão, o sucessor de Davi. Até o nascimento de Salomão, Betsabeia quase não fala. Anos mais tarde, no entanto, para defender o direito de Salomão ao trono, ela se une ao profeta Natã e cobra de Davi o cumprimento da promessa que este lhe havia feito: de que o filho dela seria o seu sucessor (1 Rs 1,11-31). Foi assim que a mulher violentada pelo rei, obrigada a prantear o marido morto em batalha e a mudar-se para o palácio real para tornar-se uma das esposas de Davi, transformou-se na mãe do segundo rei mais famoso de Israel.
Maria - a mulher que deu o seu sim ao projeto de Deus.
Provavelmente a única mulher não estrangeira da genealogia de Mateus tenha sido Maria. Ela provavelmente era de Nazaré. Muito jovem, foi escolhida para ser mãe de Jesus. Na genealogia, o verbo está na voz passiva: “de Maria foi gerado” (Mt 1,16). Conforme o relato do evangelista Lucas, Maria inicialmente se assustou ao receber a notícia do anjo, mas depois entoou um canto de alegria (Lc 1,26-33.47-55). Esse cântico, também conhecido como Magnificat, mostra que ela era uma humilde camponesa, proveniente de uma aldeia sem importância. Surpresa, alegria e coragem são sentimentos que transparecem no Magnificat. Mesmo correndo o risco de ser apedrejada como adúltera – já que engravidara antes do casamento – Maria aceita o desafio de ser a mãe do Messias. Este, sim, lhe traria muitas dificuldades. Primeiro o noivo cogitou em abandoná-la. Imagina ter a noiva grávida! Mas foi convencido a também aderir ao projeto de Deus. Depois, já próximo do tempo de dar à luz, precisou viajar até Belém, pois precisava acompanhar o esposo que para lá tinha que ir por causa do recenseamento romano. Era uma viagem de longos dias de caminhada. Como se não bastasse o desconforto da longa viagem, ao chegar em Belém não encontrou lugar para pousar e descansar. Pariu seu filho em um estábulo. Claro que, para Maria, uma mulher simples, passar por desconfortos era algo natural. Mas parir um filho longe de casa e ainda em um estábulo era coisa bem diferente. Ao dizer sim, Maria assume passar a vida toda acompanhando o ministério de Jesus. Seu sim a fez segui-lo até a morte na cruz.
Voltamos à pergunta inicial: por que essas mulheres estão na genealogia de Jesus no Evangelho de Mateus?
Através da genealogia de Jesus, Mateus chama à memória toda a história de Israel desde Abraão, que é também considerado o pai dos prosélitos, passando por Davi e o exílio babilônico. Mostra, assim, a humanidade de Jesus: ele foi verdadeiramente homem. O fato de as mulheres serem quase todas estrangeiras pode querer mostrar que a comunidade de Mateus vai contra toda a postura de pureza de raça presente no grupo que mandou matar Jesus. Ao incluir essas mulheres na genealogia, a comunidade de Mateus deixa clara a sua opção: estrangeiros devem ser acolhidos na comunidade. As mulheres não judias dão, assim, um tom universal à genealogia. Através da sua inclusão, Mateus revela seu objetivo: o Messias traz salvação a todas as pessoas, sejam de procedência judaica ou não. Mateus foge do sistema segregacionista presente na ideologia da sinagoga e mostra que muitas foram as pessoas não judaicas que aderiram ao projeto de Deus. As histórias dessas mulheres também revelam sofrimento, luta, superação, sabedoria e resistência. Essas “mulheres de má fama” que se tornaram heroínas da fé nos inspiram em muitos momentos das nossas vidas; através de suas vidas, nos ensinam que, na história da salvação, há lugar e espaço para todas as pessoas de “boa vontade”.
Revda Sônia Mota- Pastora da IPU
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