segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

A CORAGEM DE UMA ESCRAVA



Nelson Kilpp *

Nas páginas da Bíblia, nem sempre encontramos retratada a vida como ela deveria ser, mas como ela é de fato. As pessoas não são perfeitas, e seus sentimentos nem sempre são nobres. Elas são muito humanas. Assim como nós. Gênesis 16 narra o conflito entre uma escrava chamada Agar e sua dona, Sara, esposa do conhecido patriarca Abraão. Não sabemos como Agar, que era egípcia, tornou-se escrava e foi parar na casa de Sara e Abraão. Talvez tenha sido capturada por invasores ou vendida pelos próprios pais.
Sara era estéril. Isso lhe causava grande angústia e sofrimento, pois, na época, uma mulher estéril era desprezada pela sociedade. Muitos consideravam a esterilidade uma ausência de bênção, o que era motivo de grande vergonha para uma mulher. Sem filhos, ela também teria dificuldades para enfrentar a velhice.
Por sugestão de Sara, Abraão deveria manter relações com Agar, fazendo dela uma espécie de “barriga de aluguel”. Conforme normas da época, a criança a nascer seria, para todos os fins jurídicos, filho de Sara. Mas com a gravidez de Agar se instala, entre a patroa e a futura mãe biológica, uma competição pela posição de liderança na família de Abraão. A situação torna-se insustentável a ponto de a serva Agar ter que fugir diante das humilhações da patroa.
Mas a fuga não foi uma solução para o problema. Sozinha no deserto, uma grávida não tem como sobreviver. Junto a uma fonte, o anjo de Deus encontra Agar, conversa com ela, ajudando-a a refletir sobre sua real situação: De onde vens e para onde vais, Agar? Então ele a convence a voltar, para que a criança pudesse nascer e viver no círculo protegido de uma família. Por causa da sobrevivência do filho, Agar retorna.
Comparado aos atuais conceitos de liberdade individual, Agar parece ter sido demasiadamente submissa ao retornar à patroa que a humilhara. Mas o texto permanece com os pés no chão: sem um lugar protegido, não haveria, na época, futuro nem para a mãe tampouco para o filho. A volta à casa de Sara também compromete o pai Abraão. Esse havia permanecido, até o momento, numa tranquila indiferença.
Ao deixar que Sara tomasse todas as decisões concernentes a Agar, Abraão aparentemente consegue eximir-se de sua própria responsabilidade. Com o nascimento de um filho seu em sua própria casa, ele, no entanto, é obrigado a assumir os deveres de pai. Portanto o retorno de Agar foi antes um ato de coragem.
Por causa de sua coragem e disposição para olhar de frente os problemas, Agar é tratada com o maior respeito pelo texto bíblico. Deus envia nada menos do que seu anjo para ajudar Agar no deserto. É a primeira vez que um anjo aparece após a cena da expulsão do jardim do Éden. E justamente a uma escrava egípcia.
Agar é a única mulher do Antigo Testamento que recebe a promessa de ter uma grande descendência. De seu filho Ismael (que significa: “Deus ouviu”) descenderá um grande povo. Agar confia nessa promessa. Por isso consegue enfrentar as adversidades. Por fim, o texto também dá a entender que Agar permanece mãe de fato e de direito de seu filho (v. 15-16).


* Especialista em Antigo Testamento, ministro da IECLB. Artigo cedido pelo autor publiaco na revista Novo Olhar n. 43 da Editora Sinodal.,

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