Nelson Kilpp *
Nas páginas da Bíblia, nem sempre
encontramos retratada a vida como ela deveria ser, mas como ela é de
fato. As pessoas não são perfeitas, e seus sentimentos nem sempre são nobres.
Elas são muito humanas. Assim como nós. Gênesis 16 narra o conflito entre uma
escrava chamada Agar e sua dona, Sara, esposa do conhecido patriarca Abraão.
Não sabemos como Agar, que era egípcia, tornou-se escrava e foi parar na casa
de Sara e Abraão. Talvez tenha sido capturada por invasores ou vendida pelos
próprios pais.
Sara era estéril. Isso lhe causava grande angústia e
sofrimento, pois, na época, uma mulher estéril era desprezada pela sociedade.
Muitos consideravam a esterilidade uma ausência de bênção, o que era motivo de
grande vergonha para uma mulher. Sem filhos, ela também teria dificuldades para
enfrentar a velhice.
Por sugestão de Sara, Abraão deveria manter relações
com Agar, fazendo dela uma espécie de “barriga de aluguel”. Conforme normas da
época, a criança a nascer seria, para todos os fins jurídicos, filho de Sara.
Mas com a gravidez de Agar se instala, entre a patroa e a futura mãe biológica,
uma competição pela posição de liderança na família de Abraão. A situação
torna-se insustentável a ponto de a serva Agar ter que fugir diante das
humilhações da patroa.
Mas a fuga não foi uma solução para o problema.
Sozinha no deserto, uma grávida não tem como sobreviver. Junto a uma fonte, o
anjo de Deus encontra Agar, conversa com ela, ajudando-a a refletir sobre sua
real situação: De onde vens e para onde vais, Agar? Então ele a convence a
voltar, para que a criança pudesse nascer e viver no círculo protegido de uma
família. Por causa da sobrevivência do filho, Agar retorna.
Comparado aos atuais conceitos de liberdade individual,
Agar parece ter sido demasiadamente submissa ao retornar à patroa que a
humilhara. Mas o texto permanece com os pés no chão: sem um lugar protegido,
não haveria, na época, futuro nem para a mãe tampouco para o filho. A volta à
casa de Sara também compromete o pai Abraão. Esse havia permanecido, até o
momento, numa tranquila indiferença.
Ao deixar que Sara tomasse todas as decisões
concernentes a Agar, Abraão aparentemente consegue eximir-se de sua própria
responsabilidade. Com o nascimento de um filho seu em sua própria casa, ele, no
entanto, é obrigado a assumir os deveres de pai. Portanto o retorno de Agar foi
antes um ato de coragem.
Por causa de sua coragem e disposição para olhar de
frente os problemas, Agar é tratada com o maior respeito pelo texto bíblico.
Deus envia nada menos do que seu anjo para ajudar Agar no deserto. É a primeira
vez que um anjo aparece após a cena da expulsão do jardim do Éden. E justamente
a uma escrava egípcia.
Agar é a única mulher do Antigo Testamento que recebe
a promessa de ter uma grande descendência. De seu filho Ismael (que significa:
“Deus ouviu”) descenderá um grande povo. Agar confia nessa promessa. Por isso
consegue enfrentar as adversidades. Por fim, o texto também dá a entender que
Agar permanece mãe de fato e de direito de seu filho (v. 15-16).
* Especialista em Antigo Testamento, ministro da IECLB.
Artigo cedido pelo autor publiaco na revista Novo Olhar n. 43 da Editora
Sinodal.,
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