A vida em família nem sempre é um mar de rosas. Especialmente quando irmãos não se entendem ou competem por atenção, privilégios ou poder. A Bíblia conhece vários exemplos de conflitos entre irmãos. Um dos mais conhecidos é a história de Esaú e Jacó. O primeiro é um rude caçador, o preferido do pai; o outro, pastor de ovelhas, mais caseiro, o preferido da mãe.
Naquela época, quem nascia primeiro tinha os direitos de primogênito. Herdava, por exemplo, a maior parte dos bens da família. Em contrapartida, também era responsável por sustento, proteção e sobrevivência de toda a família. Esaú nascera primeiro. Mas Jacó não se conforma em ser o irmão mais jovem. Ele quer ter os direitos do mais velho e, para alcançar seu objetivo, não hesita em recorrer a meios fraudulentos e pouco éticos.
Em primeiro lugar, Jacó oferece ao irmão morto de fome um prato de seu cozido sob a condição de receber, em troca, o direito do primogênito. Enfraquecido pela fome, Esaú aceita (Gênesis 25.27-34). Anos mais tarde, quando o pai dos gêmeos, Isaque, já velho e cego, pressente chegar o seu fim, Jacó não tem escrúpulos em enganar o próprio pai. Quando esse pede a Esaú para caçar algo e preparar-lhe uma comida saborosa, Jacó faz-se passar por seu irmão e leva ao pai um prato saboroso feito por Rebeca, sua mãe.
O objetivo da fraude é receber do pai moribundo a bênção reservada ao filho mais velho, sacramentando, dessa forma, a passagem do pátrio poder. Assim, enganado pelo filho e pela esposa, Isaque abençoa Jacó (Gênesis 27). Mais uma vez, Esaú sai perdendo, já que a bênção paterna não pode ser retirada da pessoa abençoada e, por ser uma bênção única, tampouco repetida.
A história dos dois irmãos continua com a fuga de Jacó, que teme o “furor” do irmão enganado (Gênesis 27.43-45). A narrativa bíblica concentra-se, então, nos acontecimentos em torno de Jacó, pois esse será o pai do povo de Israel. Não sabemos por que o escolhido de Deus foi Jacó, mas certamente não foi por sua conduta pouco ética. Apesar da história continuar com o patriarca Jacó, o irmão enganado não deve ser esquecido. Ele fica “em casa”, isto é, permanece junto a seus pais, dando proteção e sustento à sua mãe, Rebeca, depois da morte do pai.
Anos mais tarde, acontece o reencontro dos irmãos. Ambos estão bem de vida – em épocas bíblicas isso significa que ambos foram abençoados. Mas Jacó ainda tem medo do irmão. E com razão. Mas o inesperado acontece: “Então, Esaú correu ao encontro do irmão e o abraçou; arrojou-se ao seu pescoço e o beijou; e choraram” (Gênesis 33.4).
Esaú desiste de vingar-se pela injustiça sofrida e oferece reconciliação ao irmão. Nesse gesto, a narrativa bíblica vê um reflexo da misericórdia de Deus. Jacó expressa-o assim: “Vi o teu rosto como se tivesse contemplado o semblante de Deus” (Gênesis 33.10).
A história desses irmãos mostra-nos, em primeiro lugar, o que não deve acontecer. Além disso, também aqui Deus revela seus propósitos nas entrelinhas da história. Jacó herda, por meio de trapaça, o que caberia a seu irmão, mas, em contrapartida, vive inquieto e com medo. Esaú, apesar de enganado, não foge de sua responsabilidade com os pais. E, apesar de não receber a bênção especial do pai, não deixa de progredir na vida. E, por fim, ao contrário do filho mais velho da parábola do “filho pródigo” (Lucas 15), Esaú alegra-se com a volta do irmão e corre para abraçá-lo sem rancor, mostrando que a grandeza de espírito pode superar conflitos e salvar vidas.
Nelson Kilpp
* Especialista em Antigo Testamento, ministro da IECLB, texto cedido pelo autor.
Publicado na revista Novo olhar da Editora Sinodal n. 42
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