segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

A MAGIA DO PRESÉPIO DE NATAL



Natal é o nascimento de uma criança, não o ato arrasador de algum poderoso, nem uma descoberta maravilhosa de um cientista, nem a ação piedosa de um santo. Natal escapa, de fato, de toda lógica: o nascimento de uma criança é para fazer acontecer a grande mudança de todas as coisas, é para trazer salvação para toda a humanidade.
(Dietrich Bonhoeffer)


Gosto de presépios!
Levei anos até assumir este gosto. Gosto de presépios. Gosto de ver presépios, gosto de escolher um lugar em minha casa e montar o meu presépio de Natal!
Lembro que, quando era menina no interior da Bahia,  algumas famílias montavam presépios em suas  salas de visitas  e as pessoas entravam só para admirar. A gente que era “crente” passava pela porta, morrendo de curiosidade e vontade de olhar, mas näo podia. As pregações contra o que se considerava uma idolatria eram mais fortes e mais eficazes do que a curiosidade. A representação da família sagrada era considerada uma idolatria intolerável.  Ah, quanta beleza eu deixei de admirar!

Conta a história que Francisco de Assis, no Natal de 1227, em vez de fazer a celebração dentro do templo como era o costume, resolveu fazê-la ao ar livre em uma floresta próxima. Para que as pessoas entendessem melhor o que acontecera no Natal, ele fez uma representação usando um boi, um burro e uma manjedoura. Fico imaginando que, para quem estava ali presente, a representação foi muito mais interessante do que os longos sermöes sobre o nascimento do menino Jesus. Aquele Francisco era um bom pedagogo e, sem dúvida, tinha sensibilidade.

Gosto de montar presépios, mas näo aqueles presépios “estilizados” que cada vez mais encontramos em shoping centers e até em casas particulares, presépios que estao mais para alegorias de desfile de carnaval do que para representar o nascimento do menino Jesus. Gosto daqueles presépios simples que nos conduzem à contemplação e reflexäo, näo ao deslumbramento.  E a cada personagem que vou olhando, vou relembrando fatos e refletindo sobre a vida. O que se encontra no meu presépio?

Os animais do estábulo: o boi, o burro e algumas ovelhas. Penso que eles ficaram um tanto incomodados com aquela súbita invasäo dos seus domínios. Imagina passar a noite, primeiro, com uma mulher gemendo em dores de parto e, depois, com um bebê chorando. Isto definitivamente era algo fora da rotina. Por outro lado, näo foram os animais mais fortes, mais ferozes, mais admirados ou temidos que testemunharam um acontecimento täo importante. Mas os animais mansos e tranquilos, que serviam para o trabalho e o sustento.   

Coloco também alguns pastores, lembrando aquela gente pobre que realizava um trabalho considerado indigno pelas classe abastadas. Fico imaginando sua solidäo, o desconforto de dormir ao relento. Os perigos que enfrentavam para defender o rebanho.  Eram os sem-teto, sem-terra, sem-educacäo, sem-eira-nem-beira da época. Os primeiros que perceberam que o céu brilhava diferente, que no silêncio daquela noite escutaram, ao longe, o choro de uma criança recém-nascida e foram lá ver o que estava acontecendo. Foram os primeiros a receber uma boa notícia naquela noite fria de inverno.

Também coloco a estrela.  Imagino que, para chamar a atenção dos pastores, naquela noite elas brilharam de forma mais intensa do que o normal. Ou seria como outra noite qualquer!? E percebo como na correria do dia a dia eu passo semanas sem olhar para o céu e sem ver o brilho das estrelas que estäo lá sempre com sua beleza a piscar. Será que é para compensar essa falta de estrelas que a gente usa tantos pisca-piscas na época do Natal? Mas as estrelas estäo lá, piscando todas as noites, é de graça, nem precisamos gastar energia para apreciá-las. E os pirilampos? Lembram deles? Será que ainda existem em algum lugar?

Agora é vez da manjedoura, um coxo de madeira somente com um monte de palha somente. É bem aconchegante. Näo é nenhum berco de luxo, mas certamente é bem fofinho, coberto de palha para acolher e aquecer a criança que vai ser colocada nele. É só ter cuidado e colocar uma manta por cima para que as palhas näo piniquem o bebê.

Chegou a vez da figura que representa José. Imagino um homem com as feições cansadas depois de 150 km de caminhada, batendo de porta em porta sem encontrar abrigo porque estava tudo lotado. Com as mäos calejadas pelo ofício de marceneiro. Era hora dessa criança nascer?  Está preocupado com o bebê e com Maria também, o local näo é o mais apropriado, mas foi o que deu para arranjar. E ainda ia ter que enfrentar a longa fila para fazer o cadastramento exigido pelo Império. Pobre sofre!!!

Agora é vez de Maria. Näo é aquela mulher de aparência frágil e de olhar cabisbaixo. A minha Maria é altiva, de cabeça erguida! É verdade que está cansada depois de tanto desconforto, uma viagem no lombo de um burro, já prestes a dar à luz. Depois ainda a peregrinação pelas hospedarias e pela periferia da cidade com José batendo de porta em porta buscando abrigo e ela já com dores de parto. Mas estava tudo täo lotado que só encontraram lugar ali na estrebaria. O lugar e os animais näo a incomodavam, ela é de origem humilde e está acostumada com a dureza da vida. Ela mesma e José fizeram o parto da criança; ainda bem que ele näo deu tanto trabalho para nascer. O que a deixou de coracäo partido foi a falta de solidariedade das pessoas.

Finalmente a figura que representa o menino Jesus. Este está bem faceiro e tranquilo. Quando nasceu chorou como toda crianca faz, foi um berreiro só. Mas agora já foi amamentado e tem uma cama bem macia e quentinha. De vez em quando leva um susto por causa de uns barulhos estranhos. Säo os animais conversando entre si.

Este é o presépio que gosto de montar e contemplar.

Quando morava em Säo Leopoldo, no Rio Grande do Sul, o grupo  ecumênico local (SELEO) promovia anualmente por três dias do mês de dezembro  uma  exposição de presépios. O local escolhido era o templo da Igreja Anglicana, que ficava bem no centro comercial da cidade, em uma das ruas mais movimentadas. Os presépios eram emprestados de colecionadores particulares, de lojas e de qualquer pessoa que quisesse colaborar com o evento. Uma vez chegamos a ter quase 100 presépios de diferentes lugares, materiais e estilos. Organizávamos tudo dentro do saläo principal, com músicas natalinas e, na saída, as pessoas visitantes recebiam uma mensagem de Natal. 
Era interessante observar como muita gente se emocionava diante da cena representada, e muitas pessoas agradeciam por aquele momento de silêncio e reflexäo em meio ao burburinho daquela rua movimentada  onde o Natal era apenas um comércio.

E, agora, quero convidá-lo e convidá-la a montar um presépio de Natal e celebrar o Deus que se fez criança e veio habitar entre nós cheio de humildade. Näo para que nossos olhos contemplem a cena de uma noite feliz, mas para que vislumbrem a  promessa de um  amanhecer cheio de esperança: Porque um menino nos nasceu, e seu nome será Princípe da Paz e da Justiça!

 Revda Sonia Mota

A CORAGEM DE UMA ESCRAVA



Nelson Kilpp *

Nas páginas da Bíblia, nem sempre encontramos retratada a vida como ela deveria ser, mas como ela é de fato. As pessoas não são perfeitas, e seus sentimentos nem sempre são nobres. Elas são muito humanas. Assim como nós. Gênesis 16 narra o conflito entre uma escrava chamada Agar e sua dona, Sara, esposa do conhecido patriarca Abraão. Não sabemos como Agar, que era egípcia, tornou-se escrava e foi parar na casa de Sara e Abraão. Talvez tenha sido capturada por invasores ou vendida pelos próprios pais.
Sara era estéril. Isso lhe causava grande angústia e sofrimento, pois, na época, uma mulher estéril era desprezada pela sociedade. Muitos consideravam a esterilidade uma ausência de bênção, o que era motivo de grande vergonha para uma mulher. Sem filhos, ela também teria dificuldades para enfrentar a velhice.
Por sugestão de Sara, Abraão deveria manter relações com Agar, fazendo dela uma espécie de “barriga de aluguel”. Conforme normas da época, a criança a nascer seria, para todos os fins jurídicos, filho de Sara. Mas com a gravidez de Agar se instala, entre a patroa e a futura mãe biológica, uma competição pela posição de liderança na família de Abraão. A situação torna-se insustentável a ponto de a serva Agar ter que fugir diante das humilhações da patroa.
Mas a fuga não foi uma solução para o problema. Sozinha no deserto, uma grávida não tem como sobreviver. Junto a uma fonte, o anjo de Deus encontra Agar, conversa com ela, ajudando-a a refletir sobre sua real situação: De onde vens e para onde vais, Agar? Então ele a convence a voltar, para que a criança pudesse nascer e viver no círculo protegido de uma família. Por causa da sobrevivência do filho, Agar retorna.
Comparado aos atuais conceitos de liberdade individual, Agar parece ter sido demasiadamente submissa ao retornar à patroa que a humilhara. Mas o texto permanece com os pés no chão: sem um lugar protegido, não haveria, na época, futuro nem para a mãe tampouco para o filho. A volta à casa de Sara também compromete o pai Abraão. Esse havia permanecido, até o momento, numa tranquila indiferença.
Ao deixar que Sara tomasse todas as decisões concernentes a Agar, Abraão aparentemente consegue eximir-se de sua própria responsabilidade. Com o nascimento de um filho seu em sua própria casa, ele, no entanto, é obrigado a assumir os deveres de pai. Portanto o retorno de Agar foi antes um ato de coragem.
Por causa de sua coragem e disposição para olhar de frente os problemas, Agar é tratada com o maior respeito pelo texto bíblico. Deus envia nada menos do que seu anjo para ajudar Agar no deserto. É a primeira vez que um anjo aparece após a cena da expulsão do jardim do Éden. E justamente a uma escrava egípcia.
Agar é a única mulher do Antigo Testamento que recebe a promessa de ter uma grande descendência. De seu filho Ismael (que significa: “Deus ouviu”) descenderá um grande povo. Agar confia nessa promessa. Por isso consegue enfrentar as adversidades. Por fim, o texto também dá a entender que Agar permanece mãe de fato e de direito de seu filho (v. 15-16).


* Especialista em Antigo Testamento, ministro da IECLB. Artigo cedido pelo autor publiaco na revista Novo Olhar n. 43 da Editora Sinodal.,

terça-feira, 20 de novembro de 2012

O IRMÃO ENGANADO

A vida em família nem sempre é um mar de rosas. Especialmente quando irmãos não se entendem ou competem por atenção, privilégios ou poder. A Bíblia conhece vários exemplos de conflitos entre irmãos. Um dos mais conhecidos é a história de Esaú e Jacó. O primeiro é um rude caçador, o preferido do pai; o outro, pastor de ovelhas, mais caseiro, o preferido da mãe.

Naquela época, quem nascia primeiro tinha os direitos de pri­mo­gê­ni­to. Herdava, por exemplo, a maior parte dos bens da família. Em con­tra­partida, também era responsável por sustento, proteção e sobrevivência de toda a família. Esaú nascera primeiro. Mas Jacó não se conforma em ser o irmão mais jovem. Ele quer ter os direitos do mais velho e, para alcançar seu objetivo, não hesita em recorrer a meios fraudulentos e pouco éticos.

Em primeiro lugar, Jacó oferece ao irmão morto de fome um prato de seu cozido sob a condição de receber, em troca, o direito do primogênito. Enfraquecido pela fome, Esaú aceita (Gênesis 25.27-34). Anos mais tarde, quando o pai dos gêmeos, Isaque, já velho e cego, pressente chegar o seu fim, Jacó não tem escrúpulos em enganar o próprio pai. Quando esse pede a Esaú para caçar algo e preparar-lhe uma comida saborosa, Jacó faz-se passar por seu irmão e leva ao pai um prato saboroso feito por Rebeca, sua mãe.

O objetivo da fraude é receber do pai moribundo a bênção reservada ao filho mais velho, sacramentando, dessa forma, a passagem do pátrio poder. Assim, enganado pelo filho e pela esposa, Isaque abençoa Jacó (Gênesis 27). Mais uma vez, Esaú sai perdendo, já que a bênção paterna não pode ser retirada da pessoa abençoada e, por ser uma bênção única, tampouco repetida.

A história dos dois irmãos continua com a fuga de Jacó, que teme o “furor” do irmão enganado (Gênesis 27.43-45). A narrativa bíblica concentra-se, então, nos acontecimentos em torno de Jacó, pois esse será o pai do povo de Israel. Não sabemos por que o escolhido de Deus foi Jacó, mas certamente não foi por sua conduta pouco ética. Apesar da história continuar com o patriarca Jacó, o irmão enganado não deve ser esquecido. Ele fica “em casa”, isto é, permanece junto a seus pais, dando proteção e sustento à sua mãe, Rebeca, depois da morte do pai.

Anos mais tarde, acontece o reencontro dos irmãos. Ambos estão bem de vida – em épocas bíblicas isso significa que ambos foram abençoados. Mas Jacó ainda tem medo do irmão. E com razão. Mas o inesperado acontece: “Então, Esaú correu ao encontro do irmão e o abraçou; arrojou-se ao seu pescoço e o beijou; e choraram” (Gênesis 33.4).

Esaú desiste de vingar-se pela injustiça sofrida e oferece reconciliação ao irmão. Nesse gesto, a narrativa bíblica vê um reflexo da misericórdia de Deus. Jacó expressa-o assim: “Vi o teu rosto como se tivesse contemplado o semblante de Deus” (Gênesis 33.10).

A história desses irmãos mostra-nos, em primeiro lugar, o que não deve acontecer. Além disso, também aqui Deus revela seus propósitos nas entrelinhas da história. Jacó herda, por meio de trapaça, o que caberia a seu irmão, mas, em contrapartida, vive inquieto e com medo. Esaú, apesar de enganado, não foge de sua responsabilidade com os pais. E, apesar de não receber a bênção especial do pai, não deixa de progredir na vida. E, por fim, ao contrário do filho mais velho da parábola do “filho pródigo” (Lucas 15), Esaú alegra-se com a volta do irmão e corre para abraçá-lo sem rancor, mostrando que a grandeza de espírito pode superar conflitos e salvar vidas.

Nelson Kilpp
* Especialista em Antigo Testamento, ministro da IECLB, texto cedido pelo autor.
Publicado na revista Novo olhar da Editora Sinodal n. 42

MULHERES: UMA HISTÓRIA DE LUTA

Um olhar para a América Latina

A resistencia das Mariposas

Vocês sabem quem foram às  irmãs Mirabal: Minerva, Pátria e Maria Teresa?

Em tempos de tantas “celebridades” fúteis fabricadas pela mídia, convém relembrar pessoas que realmente fizeram algo ou lutaram por algo de útil e relevante. É o caso das irmãs Mirabal.
As irmãs Mirabal viveram na República Dominicana na época de uma das ditaduras mais cruéis da América Latina, a do ditador Rafael Leonidas Trujillo, que, durante trinta anos (1930 - 1961), manteve o povo dominicano sob um regime de terror.
As três irmãs cresceram na zona rural, no município de Salcedo. Quando Trujillo chegou ao poder, a família delas perdeu a casa e todo o seu dinheiro. As irmãs acreditavam que Trujillo levaria o país ao caos econômico e, então, juntamente com outras pessoas, inclusive seus esposos, formaram um grupo de oposição ao regime, tornando-se conhecidas como Las Mariposas. Esse movimento lutava pelo fim da ditadura, da violência e pela instauracão da democracia. As irmãs foram presas e torturadas várias vezes. Apesar disso, continuaram firmes em seus objetivos.
A participação ativa das irmãs Mirabal na luta contra Trujillo deu-lhes a fama de revolucionárias, motivo suficiente para que, em certa ocasião, Trujillo manifestasse, diante de um grupo de pessoas, que seus únicos problemas eram as irmãs Mirabal e a Igreja.  
No dia 25 de novembro de 1960, Minerva e Maria Teresa foram visitar seus esposos na prisão, em companhia de sua irmã Pátria. No caminho foram interceptadas pelos agentes do Serviço Militar de Inteligência. Conduzidas a um canavial próximo, foram objeto das mais cruéis torturas, antes de se tornarem vítimas do que foi considerado o crime mais horripilante da história dominicana. Cobertas de sangue, destroçadas a golpes, estranguladas, foram colocadas novamente no veículo em que viajavam e jogadas num precipício para simular um acidente. O assassinato das irmãs Mirabal produziu um grande sentimento de dor em todo o país. Porém, serviu para fortalecer o espírito patriótico de um povo desejoso de estabelecer um governo democrático que garantisse o respeito à dignidade humana[1].
No dia 30 de maio de 1961, o ditador Trujillo tombou assasinado; era o fim de uma ditadura de 31 anos.
No Primeiro Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho de 1981, propôs-se a data do assassinato das irmãs Mirabal como Dia Latino-Americano e Caribenho de luta contra a violência à mulher. Em 17 de dezembro de 1999, a Assembleia Geral das Nações Unidas declarou que o dia 25 de novembro seria o Dia Internacional da Eliminação da Violência contra a Mulher, em homenagem ao sacrifício das Mariposas.

Um olhar para  os textos bíblicos
A conquista de um direito[2]
E vocês sabem quem foram Macla, Noa, Hogla, Milca e Tirza? São cinco irmãs que conseguiram mudar a lei de herança no antigo Israel. São as protagonistas da história que se encontra em Números 27.1-11.
As cinco irmãs são solteiras e órfãs. Seu pai, Zelofeade, morrera sem deixar filhos homens. Conforme a lei vigente (Dt 21.15-17), elas não poderiam ser herdeiras, pois tradicionalmente a herança era dividida entre os filhos homens, para garantir a preservação do nome paterno e, assim, a sobrevivência da família. Mas o caso delas era específico. O pai havia morrido sem deixar filhos homens; além disso, as filhas mulheres que tivera permeneceram solteiras. Como resolver a situação? Quem ficaria com a herança?
Aquelas mulheres conheciam bem o que dizia a lei da herança, mas estavam dispostas a lutar para mudá-la e, assim, manter o nome do pai vivo e, naturalmente, garantir a própria sobrevivência. Apesar da situação desesperadora, elas não se intimidaram. Estavam dispostas a enfrentar as diversas instâncias necessárias, mostrando muita coragem e iniciativa.
Assim sendo, colocaram-se à porta da tenda da congregação, ou seja, dirigiram-se à assembléia e à liderança do povo. Contaram a sua história e a história do pai; trouxeram argumentos em favor do direito de seu pai a um lote da terra a ser ocupada pelos israelitas e do direito de ter preservada a memória do pai. À base dessa argumentação reivindicaram o direito de herdar a propriedade imóvel que cabia a seu pai.
Essa reinvindicação implicava uma revisão da legislação em vigor. E foi o que aconteceu. O texto termina com uma mudança da lei vigente. Essa mudança recebeu a sanção de Deus, que reconheceu a argumentação e o direito das mulheres, que foram, então, incluídas na sucessão hereditária (Nm 27.8-11). Claro que nem tudo é perfeito na conquista desse direito: elas recebem a herança sob a condição de se casarem dentro do mesmo clã de seu pai (Nm 36.1-9), a fim de evitar que o patrimônio da família passe a outra tribo. Mas, naquele momento, a coragem das cinco irmãs criou condições para que o direito à herança de propriedade imóvel fosse estendido também às mulheres.

Nas entrelinhas do texto percebemos que, na sociedade em que viviam essas mulheres, havia desigualdade de poder e de direitos entre os gêneros, que se expressava em leis excludentes. Mas foi a coragem de algumas mulheres que criou as condições necessárias para mudar essa situação.

A ameaça de uma viúva
Certamente você conhece a história da viúva que ameaçou dar uma bofetada em um juiz. O episódio encontra-se em Lucas 18.1-8.
Na Bíblia de Jerusalém, essa parábola recebeu o título de: “o juiz iníquo e a viúva importuna”; ela também poderia ter recebido o título de: “a viúva que ameaçou esbofetear o juiz”.
O texto não menciona o nome da mulher; ele apenas afirma que ela era uma viúva – o que, na época, implicava uma vida com muitas precariedades. O texto também revela que a viúva tinha um problema que ela mesma não podia solucionar. Ela precisava de alguém competente para resolver o seu problema. Por isso ela buscou a autoridade competente para a sua causa.
Ao contar a párabola, Jesus não entrou em detalhes e não esclareceu de qual pendência judicial se tratava. Resta-nos, portanto, especular sobre possíveis causas ou reivindicações de uma viúva naquela época. Poderia ter sido[3]:
- uma questã de Kethuba, ou seja, uma soma de dinheiro prescrita no contrato de casamento, à qual ela teria direito em caso de divórcio ou morte do marido;
- um caso da lei do Levirato, conforme a qual um cunhado tinha o dever de casar com ela para garantir filhos ao marido falecido;
- uma quantia de dinheiro devida ao marido falecido, à qual a viúva teria, agora, direito (por exemplo, o valor resultante de hipoteca ou venda de algum bem ou propriedade).
“Faze-me justiça contra meu adversário” é o pedido incansável daquela viúva. Este pedido revela a experiência de muitas viúvas que, em vez de serem protegidas como mandava a lei, tornavam-se vítimas de injustiças sociais.
A postura arrogante do juiz, que näo temia nada nem ninguém, demonstra que ele näo pretendia ajudá-la a buscar seus direitos. Ele desprezava aquela mulher. Mas se ele é arrogante, ela é insistente e näo desiste. Ela näo lhe dá sossego e lhe causa profundo cansaço e fadiga. Numa atitude consciente, aquela viúva busca por seus direitos dando muito trabalho ao juiz. A tradução de Lucas 18.5 (“importunar” ou “aborrecer”) ameniza o termo original, que significa: “golpear no rosto”.  O juiz muda a sua postura porque seria uma vergonha ser golpeado no rosto por uma mulher.  Isto seria um escândalo.
Embora a parábola tenha sido usada por Jesus para exemplificar o relacionamento de Deus com as pessoas que creem, ele näo ignorava a situação de milhares de mulheres da sua época. Essa parábola pode e deve servir para nos inspirar a näo desistirmos dos nossos direitos. A viúva incomoda, ameaça e busca por justiça até conseguir que o seu caso seja julgado. Ela näo assume uma atitude passiva e resignada diante dos obstáculos, mas luta e busca pelo que é justo.

Um olhar para nossa realidade
Na América Latina e no Caribe, a luta das mulheres contra todo tipo de violência a que säo submetidas todos os dias, a sua luta por dignidade de trabalho e contra a miséria ainda continua sendo a agenda principal. 
O relatório da Comissäo Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) intitulado Que tipo de Estado? Que tipo de igualdade? Mostra que as mulheres latno-americanas continuam a enfrentar discriminação no mercado de trabalho, recebendo salários menores do que os homens, tendo carga horária maior em tempo gasto com atividades domésticas não remuneradas. Além disso, as mulheres ocupam a maioria das posições de baixa remuneração e recebem salários inferiores para trabalhos de valor igual.[4]
Também o Mapa da Violência publicado em agosto de 2012 pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos (CEBEPELA) e pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO) [5] traz números assutadores. Entre 1980 e 2010, foram assassinadas, no Brasil, mais de 92 mil mulheres, sendo que 43,7 mil só na última década.  Conforme atualizacäo de 2010 realizado pelo Ministério da Saúde, o registro total de homicídios de mulheres passou de 49.992 para 52.260. E isso apesar de alguns avancos conseguidos com da Lei Maria da Penha. 
Em um contexto de 84 países, o Brasil ocupa a sétima posicäo neste ranking de vergonha e violência contra as mulheres, sendo que, dos seis países anteriores, quatro se encontram na América Latina.
A história das mulheres foi e continua sendo uma história de luta. Cada conquista que temos é fruto de muita dor, lágrimas, debates, articulação e trabalho. Para que a lei Maria da Penha fosse aprovada, foi preciso que uma mulher presa a uma cadeira de rodas por causa da violência do marido denunciasse o Brasil na ONU de näo cumprir os acordos internacionais que assinara e que garantiam proteção às mulheres em situação de violência. O Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres ainda está em lento processo de implantacäo em muitos municípios brasileiros que nem sequer contam com uma Coordenadoria da Mulher. Há uma longa estrada a ser percorrida.
Um olhar para a nossa igreja
Você conhece Anas, Vânias, Marias, Celestes, Olgas...? Säo mulheres que estão sentadas nos bancos das nossas igrejas e que podem estar sofrendo violência nã só doméstica, mas também institucional, psicológica, religiosa, etc.
Na minha atuação junto a mulheres vítimas de violência, escutei muitas histórias, enxuguei lágrimas e acolhi mulheres atuantes nas igrejas, inclusive uma esposa de pastor e esposas ou filhas de líderes considerados “acima de qualquer suspeita”, “homens de Deus”. Mulheres que enfrentavam, no seus dia-a-dia, situações de violência dentro dos seus lares, mas precisavam esconder o fato para näo “manchar a honra do marido ou do pai” ou  por vergonha ou por terem aprendido que o que “Deus uniu o homem não separa”.
Por isto defendo que as nossas igrejas participem e se engajem em projetos e programas de prevenção, apoio e denúncia a qualquer tipo de violência contra a mulher. Defendo que a nossa igreja tenha não só uma assessoria, mas uma secretaria para as mulheres porque:
1- O movimento de mulheres, em todo mundo, desempenhou e desempenha um importante papel profético junto às igrejas, no sentido de chamar a atenção para a necessidade e a importância de superar tabus e de denunciar práticas que são incoerentes com o Evangelho.

2- É o movimento de mulheres que  propõe a discussão sobre temas contemporâneos e importantes para as nossas lutas, mesmo dentro das instituições eclesiásticas.

3- Porque precisamos nos fortalecer e fortalecer os nossos espaços de atuação; para isto precisamos de um espaço nosso de reflexão, partilha, cursos, etc.

4- Porque não basta a igreja ordenar mulheres e permitir o exercício do presbiterato e da diaconia para ter resolvidas todas as questões referentes às mulheres no âmbito eclesiástico.

5- É importante para nós a reflexão sobre a nossa participação nas igrejas e na reflexão teológica.

6- Por não termos, nos nossos cursos de Teologia (que eu tenha conhecimento), uma cadeira que contemple a Teologia ou Hermenêutica feministas, precisamos debruçar-nos sobre temas que são imprescindíveis para nós mulheres, já que a pesquisa nessa área nos pode ser de grande ajuda.

7- Quantas igrejas  mantêm algum projeto de atendimento, apoio, prevenção ou denúncia da violência contra a mulher? 

Por tudo isto temos a certeza de que a nossa história de luta continua e, por isso, vamos seguir lutando por nossos direitos sem dar sossego a ninguém, até que eles sejam respeitados!


  
25 de Novembro: Dia Latino-Americano de Combate à Violência Contra a Mulher


[1] Maiores informações sobre as Irmãs Mirabal podem ser encontradas no livro da escritora  Julia Alvares. No tempo das Borboletas. Em 2001, esse livro foi transformado em filme.  Também Mario Garcia Llosa traz essa história em seu livro A Festa do Bode.
[2] O Direito das Filhas à Heranca. www.teologia-assuncao.br
[3] REIMER, Ivoni. O poder de uma protagonista. A oracäo de pessoas excluídas. RIBLA 25 (Pero nosotras decimos).
[4] Relatório do CEPAL. Site Ecodesenvolvimento.
[5] Site www.mapadaviolencia.org.br

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

PRISCILA E ÁQUILA

    A história da igreja não se faz apenas com indivíduos ilustres de personalidade forte. Desde os primórdios da igreja, grupos de pessoas, famílias inteiras ou casais comprometidos foram decisivos na missão. Isso pode torná-la até mais eficaz. Um casal bem conhecido da história da igreja, já mencionado no Novo Testamento, são Priscila (também chamada Prisca) e Áquila. Os dois aparecem sete vezes na Bíblia
    Sempre são mencionados juntos; geralmente Priscila aparece em primeiro lugar. Esse destaque certamente não é acaso. Priscila deve ter tido a iniciativa maior na missão.
    Priscila e Áquila fazem parte da comunidade judaica de Roma no primeiro século. No ano 49, eles foram expulsos, juntamente com outros judeus, de Roma por causa de sua fé. O imperador Cláudio decretara essa expulsão devido a certos distúrbios ocorridos na comunidade por causa de um tal de “Cresto”.
    Presume-se que discussões entre os judeus que rejeitaram Cristo e os que aderiram a ele tenham levado a um conflito na comunidade judaica e, por fim, ao decreto imperial determinando a expulsão de judeus e cristãos de Roma. Os romanos aparentemente não faziam diferença entre judeus e cristãos.
    Priscila e Áquila foram então morar na cidade grega de Corinto. Ali viveram de sua profissão. Em Corinto, conheceram o apóstolo Paulo, o qual hospedaram em sua casa por 18 meses: “Lá [Paulo] encontrou certo judeu chamado Áquila, […] recentemente chegado da Itália, com Priscila, sua mulher, em vista de ter Cláudio decretado que todos os judeus se retirassem de Roma […] E, já que eram do mesmo ofício, passou a morar com eles e ali trabalhava, pois a profissão deles era fazer tendas” (Atos 18.2-3).
    A convivência na família e a sociedade no trabalho beneficiaram a missão da igreja. O casal acompanhou Paulo em uma de suas viagens e teve importância decisiva na edificação da comunidade de Éfeso, para onde se havia transferido (Atos 18.18-19). Nessa cidade, ainda cumpriu outra missão: orientar um pregador entusiasmado sobre aspectos decisivos da doutrina cristã.
    “Chegou a Éfeso um judeu, natural de Alexandria, chamado Apolo, homem eloquente e poderoso nas Escrituras. Ele era instruído no caminho do Senhor […], mas conhecia apenas o batismo de João […] Priscila e Áquila tomaram-no consigo e [...] lhe expuseram o caminho de Deus” (Atos 18.24-28). Assim, além de acolher hóspedes em sua casa, o casal também se sentia responsável por orientar os pregadores de sua igreja.
    Depois da morte do imperador Cláudio, Priscila e Áquila voltaram a Roma. Ao escrever sua Carta aos Romanos, Paulo saúda particularmente o casal: “Saudai Priscila e Áquila, meus cooperadores em Cristo Jesus, os quais pela minha vida arriscaram a sua própria cabeça; e isso lhes agradeço, não somente eu, mas também todas as igrejas dos gentios” (Romanos 16.3-5).
    Não sabemos em que circunstância o casal arriscou sua vida para salvar a de Paulo. Esse ato foi, no entanto, de suma importância não somente para o apóstolo, mas para todas as comunidades gregas.
Mas a atividade rotineira e duradoura do casal em Roma deve ter marcado mais profundamente a vida da igreja. Antes de a comunidade possuir um lugar de oração, ela se reunia na casa de Priscila e Áquila. Esses cultos domésticos eram – e ainda são – muito importantes para a vida comunitária.
    Assim como Priscila e Áquila, muitos casais dedicam-se, das mais diversas formas, à missão da igreja. Todos eles são de máxima importância para a vida das comunidades. Priscila e Áquila continuam sendo um exemplo de discipulado e um estímulo para nosso testemunho.

Nelson Kilpp é especialista em Antigo Testamento, ministro da IECLB. Texto  publicado pela Revista Novo Olhar nº 41 cedido pelo autor.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

AS MULHERES NA REFORMA PROTESTANTE

                                                          Revda. Sonia Mota
No calendário protestante, o dia 31 de outubro é uma data importante, pois é a data em que se comemora o dia da Reforma. Todo protestante com um mínimo de conhecimento de história da Igreja citará de cor reformadores como Martinho Lutero, João Calvino, João Knox, Ulrico Zwínglio, Filipe Melanchton e outros. Mas nesta lista está faltando uma parte importante desta história. Onde estão as mulheres que atuaram pela Reforma da Igreja,  defendendo, entre outros, a ordenação de mulheres? Que foi feito da memória delas e do trabalho que realizaram? Sabemos que ambos, homens e mulheres, tiveram papel relevante no movimento da Reforma. Mas lamentavelmente as  mulheres são geralmente esquecidas. No que segue, queremos dar visivilidade à importância da atuação de algumas destas mulheres, que inclusive tiveram que se defender dos próprios reformadores homens.

 

1. A

posição dos reformadores
     Na tradição reformada, embora o sacerdócio universal dos crentes fosse um tema amplamente difundido, ele não foi aplicado para garantir às mulheres o direito ao ministério ordenado. Se, na Idade Média, o ideal feminino era o de monja, na época da Reforma, o ideal era ser esposa e mãe.
    Lutero viu como apropriado para as mulheres o papel de ajudantes e companheiras dos homens, cabendo a elas o tradicional papel de esposa e mãe, permanecendo sujeitas aos maridos. Para ele, não existe nenhuma permissão divina para que elas exerçam papel de liderança. Mesmo as que são rainhas precisam de um conselho masculino para administrarem, pois só ao homem é dado o direito de mandar[1].
    João Knox é ainda mais radical, chegando até mesmo a ser grosseiro ao publicar um tratado intitulado “O primeiro clangor da trombeta contra o monstruoso regimento das mulheres” (1558), no qual anunciou a sua posição contra qualquer tipo de governo de mulheres, o que para ele significava contrariar a natureza da Escritura e usurpação da autoridade masculina. Mesmo reconhecendo que Deus colocou mulheres notáveis em posição de comando, ele afirma que as mulheres “são fracas, débeis, impacientes, vulneráveis e tolas; e a experiência tem demonstrado que elas são inconstantes, volúveis, cruéis e destituídas do espírito de deliberação e organização”[2]. Há quem justifique esta postura devido às experiências que este reformador teve com as rainhas.
    Calvino assume uma posição ambivalente. Segundo Jane Douglas[3], “Calvino é o único teólogo do século XVI que vê o silêncio das mulheres na Igreja como coisa ‘indiferente’, isto é, como matéria determinada pela lei humana e não pela lei divina”. Ele mesmo manteve contato e trocou correspondência com Marguerite de Angoulême. Calvino tratou do assunto sobre o silêncio das  mulheres, instituído por Paulo na Igreja, como matéria de ordem política. Examinou criticamente vários textos bíblicos, nos quais reconhece a participação e a importância da mulheres nas Escrituras Sagradas. No seu comentário sobre Gênesis, rompeu com a tradição escolástica ao afirmar que a mulher não foi dada para Adão para ter filhos, mas para ser sua companheira. No entanto, mantém a subserviência da mulher em relação ao homem[4].
Mesmo analisando os textos referentes à participação das mulheres na Bíblia, e até rompendo com a tradição em alguns escritos, o seu trabalho não trouxe conseqüências favoráveis ao papel das mulheres na liderança das Igrejas. Embora reconhecesse a existência de profetisas, admitia que seria um escândalo uma mulher ensinar ao seu marido pela pregação. Faltou aos reformadores coerência teológica, pois todas as pessoas, independentemente de raça, gênero ou condição social, estão incluídas no sacerdócio universal dos crentes. 
    Mas apesar dos posicionamentos das lideranças masculinas da Reforma, as mulheres buscaram ocupar seus espaços e muitas delas tornaram-se pregadoras.
2. As reformadoras
    Catarina von Bora (1499-1550), na Alemanha, talvez seja a mulher mais lembrada da Reforma, sendo hoje reconhecida por ter extrapolado o papel de “esposa de Lutero”. Além de excelente administradora dos bens familiares e da casa, conhecia os segredos da medicina caseira, utilizando seus conhecimentos para curar muitas pessoas. Além disto, havia sido monja e, mesmo antes de casar com Lutero, já conhecia o pensamento do reformador através dos seus escritos. Era uma mulher culta, que sabia ler e escrever. Com seus conhecimentos e por participar dos debates que aconteciam em sua casa, Catarina pôde opinar sobre assuntos referentes à Reforma. Em uma das cartas, Lutero informa a ela sobre o Colóquio de Marburg, que tivera com outros reformadores sobre a Santa Ceia, destacando-se dentre eles Zwínglio. Além do mais, foi ela quem incentivou Lutero a responder a Erasmo, quando este escreveu De Libero Arbitrio, ao que Lutero respondeu com o escrito De Servo Arbitrio[5].
    Catarina Schutz Zell[6] (1497-1562), de Estrasburgo, era uma mulher culta, leitora de Lutero; casou-se com um sacerdote que sofreu a excomunhão. Para defender o esposo, escreveu ao bispo cartas de protesto em defesa do casamento clerical:
Você me lembra que o apóstolo Paulo disse que as mulheres estejam caladas na Igreja. Eu desejo lembrar-lhe as palavras do mesmo apóstolo de que em Cristo não há mais macho nem fêmea, e a profecia de Joel: “Derramarei do meu espírito sobre toda a carne e seus filhos e suas filhas profetizarão”. Não pretendo ser João Batista repreendendo os fariseus. Não alego ser Natan censurando Davi. Só aspiro ser a besta de Balaão castigando o seu senhor[7].
    Recebia em casa muitos líderes da Reforma, entre eles Calvino. Além de acolher em casa pessoas perseguidas por causa da Reforma, Catarina Zell também escrevia muito, e em suas cartas incentivava as mulheres dos fugitivos a permanecerem firmes na fé. Estes escritos foram publicados como tratado de consolação. Escreveu também comentários sobre os Salmos 51 e 130, sobre a oração dominical e o Credo. Prestou serviços de acolhida a flagelados, exercendo o ministério da visitação. Intercerdeu por melhorias hospitalares. Pregou diversas vezes, inclusive na morte do esposo.
    Claudine Levet (1532...?) atuou em Genebra. As atividades desta mulher foram relatadas nas atas de Antoine Fromment, pastor protestante da época.
Quando se achava em um ajuntamento em que não havia ministros, os presentes pediam-lhe para explicar a Escritura, porque não podiam encontrar pessoa mais bem dotada com a graça do Senhor. Deixando para trás todas as suas pompas aplicou suas posses no socorro aos pobres, principalmente aos da família da fé, e os que haviam sido expulsos por causa da verdade, recebendo-os em sua casa[8].
    Através das informações registradas por Fromment, é possível concluir que Claudine Levet pregava publicamente em Genebra, antes mesmo da chegada de Calvino.
    Marie Dentière[9] também atuou em Genebra, não só pregando como publicando livros. Entre estes estão A Guerra e o Livramento da Cidade de Genebra (1536), sobre a Reforma genebrina entre 1504 a 1536, Defesa das Mulheres e Uma Carta Muito Útil (1539), duas cartas escritas para a rainha Marguerite de Navarra. Dentière conclui a carta Defesa das Mulheres fazendo um apelo à rainha para que interceda junto ao irmão, o rei da França, fazendo com que se elimine a divisão entre homens e mulheres, pois estas também receberam revelações que não podem ficar escondidas.
Embora não seja permitido a nós (mulheres) pregar em assembléias públicas e nas Igrejas, não obstante não nos é proibido escrever e admoestar uma a outra com todo o amor. Não somente para vós, senhora, desejei escrever esta carta, mas também comunicar coragem a outras mulheres mantidas em cativeiro, a fim de que todas elas não temam ser exiladas do seu país, parentes e amigos, como eu mesma, por causa da Palavra de Deus. Para que elas possam, de agora em diante, não ser atormentadas e afligidas em si mesmas, mas antes, rejubiladas, consoladas e estimuladas a seguir a verdade, que é o evangelho do Senhor Jesus Cristo. Até agora, este evangelho tem estado escondido, de sorte que ninguém ousa dizer uma palavra a respeito dele, e apareceu que as mulheres não deviam ler e entender nada dos escritos sagrados. É esta a causa principal, minha senhora, que me compeliu a escrever a V. Excia., esperando em Deus que no futuro as mulheres não serão tão desprezadas como no passado...em todo o mundo[10].
    O estilo literário de Dentière mostra que ela escreve como mulher para mulheres, utilizando mesmo o recurso inclusivo, não omitindo nos seus escritos as figuras femininas da Bíblia, alertando para o fato de que não foram as mulheres que traíram Jesus ou foram falsas profetisas. Quando analisa o encontro de Jesus com a mulher samaritana, destaca esta mulher como uma das maiores entre os pregadores. E quanto à ordem de Jesus para as mulheres que testemunharam sua ressurreição, ela conclui:
Se Deus deu então a graça a algumas boas mulheres, revelando-lhes, pelas Santas Escrituras, algo santo e bom, não ousariam elas escrever, falar e declará-lo uma à outra? Ah! seria uma audácia pretender impedi-las de fazê-lo. Quanto a nós, seria muita tolice esconder o talento que Deus nos deu[11]
    Uma calvinista inglesa, Rachel Specht, usou, em 1621, a parábola dos talentos para defender o direito das mulheres. Ela argumentava que as mulheres receberam corpo, alma e espírito de Deus. A alma, segundo ela, era o lugar onde habita a mente, a vontade e o poder. Para que Deus daria todos estes talentos a elas se não para serem usados? Não usá-los seria uma irresponsabilidade. As mulheres precisavam assumir o compromisso com o Evangelho, ou teriam que responder diante do Senhor pelo mau uso dos seus talentos. Rachel escrevia em forma de poesia e usava o próprio nome, em uma época em que as mulheres faziam uso de pseudônimos masculinos para permanecer no anonimato. As suas anotações eram abonadas por passagens bíblicas, o que revela seu conhecimento e capacidade de argumentação teológica[12].
    As denominações oriundas da Reforma levaram algum tempo para permitir a ordenação de mulheres. Ainda hoje, em alguns lugares e em determinadas denominações,  lamentavelmente ela não é permitida.
    Resgatar esta história é fazer justiça a estas mulheres que tiveram a coragem de fazer diferente, abrindo caminhos para que tantas outras pudessem assumir o púlpito e ser ordenadas ao ministério. Que o dia 31 de outubro seja também um espaço de comemorar todas estas reformadoras e de continuar lutando pelo nosso direito de exercer “o sacerdócio universal de todos os e todas as crentes”.


[1] Martim LUTERO. Obras selecionadas, v. 5, p. 160-169,
[2] John KNOX, The first blast of the trumpet against the monstruous regiment of women (1558), in: The works of John Knox, ed. David Laing, v. IV, p. 366-373, ap. J. D. DOUGLAS, op. cit., p. 103-104.
[3] ID., ibid., p. 26.
[4] George H. TAVARD, Woman in Christian Tradition, p. 176.
[5] Heloísa Gralow DALFERTH, Katharina von Bora, em especial p. 86.
[6] Alexander Duncan REILY, Ministérios Femininos em Perspectiva Histórica, p. 136-137.
[7] R. BAINTON, Women of the Reformation in Germany and Italy, p. 55, apud: J. D. DOUGLAS, op. cit. p. 101.
[8] Anthoine FROMMENT, Les Actes et gestes merveilleux de la cité de Genève, apud: J. D. DOUGLAS, op. cit., p. 110*.
[9] J. D. DOUGLAS, op. cit., p. 111-114.
[10] Apud J. D. DOUGLAS, op. cit., p. 112-113.
[11] Apud J. D. DOUGLAS, op. cit., p. 113.
[12] W. DEIFELT, op. cit., p. 365-366.