Mês de setembro é mês de comemoração na IPU. Faz exatamente 34 anos que um grupo de homens
e mulheres, alguns expulsos, outros perseguidos e ainda outros descontentes com
a IPB, se uniram para recomeçar. Havia, naquele grupo, a firme vontade de
iniciar “uma nova forma de ser igreja”, com outras propostas como: o
compromisso ecumênico, o compromisso de se engajar em projetos e iniciativas
por uma sociedade justa e o compromisso de que todas as pessoas teriam igualdade de direitos e participação
nas instâncias decisórias da igreja. Inaugurava-se, ali, um novo tempo para as
mulheres presbiterianas, pois pela primeira vez elas teriam, de fato e de
direito, participação plena em todas as instâncias decisórias da igreja e
também ao ministério ordenado.
Neste artigo, gostaria de relembrar a conquista de espaço e
a participação das mulheres na IPU, refletir sobre os passos que demos até aqui
e, também, quais as conquistas que ainda precisamos alcançar. Quero deixar
claro que me reporto, aqui, a alguns depoimentos de mulheres do âmbito do PSVD.
Compartilhando
experiências
Quando escrevi a minha dissertação de mestrado e procurei
pesquisar sobre a nossa história, fui surpreendida pela ausência das mulheres
na historiografia oficial da Igreja Presbiteriana. Este fato era completamente
estranho para mim, que fui criada em uma igreja onde as mulheres exerciam
liderança e representavam a força de sustentação dos trabalhos.
A experiência que eu havia tido com as mulheres na igreja
tornava estranho este silêncio. Foi pela voz de uma mulher que aprendi minha
primeira oração e os primeiros cânticos religiosos. Foi também através dos
ensinamentos de mulheres que conheci as histórias bíblicas e seus personagens
fascinantes. Foi especialmente através do trabalho das mulheres que vi o templo
presbiteriano da minha cidade no interior da Bahia ser erguido. Então, onde
estava relatada a atuação das mulheres da Igreja? Por que os livros enalteciam
o trabalho dos homens e as perseguições que eles sofreram, mas silenciavam as
dores, lutas e resistência das mulheres? Por que elas estavam invisíveis?
Mesmo que os estatutos da IPB não permitissem às mulheres o
direito de participar nas instâncias decisórias, elas sempre tiveram presença
muito forte nas Igrejas. Ensinando na Escola Dominical ou atuando na SAF
(Sociedade Auxiliadora Feminina), elas procuravam driblar os documentos
normativos que não lhes permitiam acesso a cargos de comando. A elas era
atribuída a função de “auxiliadoras”. Mas, a partir deste espaço que lhes era
dado, elas se articulavam para se fazer ouvir. Uma liderança feminina de uma
das igrejas do Recôncavo Baiano me revelou que, em algumas Igrejas no
interior da Bahia, naquela época, muitas mulheres eram formadas em magistério,
enquanto os seus esposos eram agricultores. Como não podiam participar das
reuniões do Conselho da Igreja, elas ficavam do lado de fora escutando pela
janela. Quando havia algum assunto mais difícil a ser resolvido, os esposos
saíam da reunião e iam consultá-las. Geralmente acatavam a opinião delas.
“As
Auxiliadoras Femininas”
Enquanto a Igreja Presbiteriana do Brasil destinava às
mulheres o papel de “auxiliadoras”, elas sabiam se articular bem e tomar suas
próprias decisões. Tinham autonomia e buscavam ocupar seus espaços, cientes do
trabalho que realizavam e da força que tinham.
A Presidente da SAF, na Bahia, na época da crise, me deu o seguinte
depoimento:
Recebi uma carta do Supremo Concílio
avisando que o Presbitério do Salvador tinha sido dissolvido e que eu deveria
me reunir com o Presbitério do Recife. Imediatamente fui até o Colégio Dois de
Julho, onde se concentrava um grande número de pastores do nosso presbitério e
mostrei a carta. Houve imediatamente uma convocação da mesa do presbitério e da
nossa SAF e tomamos a decisão de não acatar a carta do Supremo Concílio...
Foi resistência completa. Fui destituída do cargo de Presidente, mas nós resolvemos não tomar conhecimento e continuei a realizar todos os trabalhos de maneira normal (...) A SAF recebeu todo o apoio do Presbitério local para continuar seu trabalho. Naquela época, a Federação de Mulheres da Bahia já se reunia juntamente com a reunião da executiva do presbitério, embora não interferíssemos nas reuniões deles. Isto foi um exemplo citado no Congresso Nacional de Mulheres, que aconteceu no Rio de Janeiro. Nos outros presbitérios, a reunião de mulheres era realizada em dias diferentes[1].
Foi resistência completa. Fui destituída do cargo de Presidente, mas nós resolvemos não tomar conhecimento e continuei a realizar todos os trabalhos de maneira normal (...) A SAF recebeu todo o apoio do Presbitério local para continuar seu trabalho. Naquela época, a Federação de Mulheres da Bahia já se reunia juntamente com a reunião da executiva do presbitério, embora não interferíssemos nas reuniões deles. Isto foi um exemplo citado no Congresso Nacional de Mulheres, que aconteceu no Rio de Janeiro. Nos outros presbitérios, a reunião de mulheres era realizada em dias diferentes[1].
Foi
com esta atitude de quem sabe agir, mesmo não exercendo cargo de liderança
dentro da instituição, que as mulheres reagiram quando chegaram as ordens do
Supremo Concílio que dissolviam o Presbitério do Salvador, revelando grande
disposição para exercer uma oposição ativa.
A
força das mulheres nas igrejas locais
Como será que a transição IPB-IPU ocorreu junto às
comunidades locais? Não se pode ter a ingenuidade de imaginar que todas as
pessoas que participavam nas Igrejas locais soubessem da dimensão da crise que
estava ocorrendo dentro da IPB. Algumas pessoas afirmam que “ouviam falar”, mas
não tinham uma idéia clara do que estava ocorrendo. Nas rodas de conversa,
durante reuniões da Igreja, é fácil comprovar esta afirmação. Alguém disse:
Aconteceu
com a gente o mesmo que aconteceu com o Brasil quando dormimos monarquistas e
acordamos republicanos. Assim, também dormimos IPB e acordamos IPU.
Segundo o depoimento prestado por mulheres nas Igrejas do
interior da Bahia, a resistência às ordens do Supremo Concílio também foi muito
forte. Em junho de 1975, os pastores Josué Mello e Celso Dourado foram depostos
do pastorado. Algumas mulheres ficaram sabendo da crise através do pastor
local, algumas confessaram que não entendiam direito o que estava acontecendo,
mas foram a favor da decisão do Conselho da Igreja em dar apoio aos pastores
perseguidos, quando a Assembléia foi consultada.
Toda a
Igreja viu que não havia nenhum motivo para os pastores serem perseguidos. Toda
a Igreja apoiou. Ninguém, mas ninguém mesmo teve reação contrária. Não deixou
de ficar aquela expectativa: “que é que pode acontecer? Como vai ser depois?”.
Mas todos aceitaram e demos total apoio aos pastores. Isso foi imprescindível,
pois a gente reconhecia que, como pastores, eles não haviam dado motivo nenhum
para serem perseguidos como estavam sendo nem havia motivo para todo aquele
problema[2].
É
impossível escrever a história da Igreja sem incluir estes depoimentos e
valorizar a participação das mulheres como sujeito histórico e decisivo do
processo. Se a decisão foi para a Assembléia da Igreja, não se pode esquecer
que elas sempre foram maioria, logo, o voto delas foi decisivo. O Presbitério
também declara o não reconhecimento da deposição dos seus pastores, afirmando
que os mesmos iriam continuar a exercer as funções pastorais. Muitas Igrejas
não acompanharam os antecedentes da crise, mas, ao sentirem seus pastores serem
atingidos, foram solidárias com eles.
A
IPU e o compromisso com as mulheres
Foi no II Encontro do grupo de presbiterianos e
presbiterianas que haviam sido expulsos ou que saíram da IPB, ocorrido em Belo Horizonte , em
março de 1978, que o embrião de “uma nova forma de ser Igreja”[3]
começou a ser gestado. Durante o encontro, uma comissão foi encarregada de
estudar e apresentar propostas relativas à questão dos ministérios. Dentre as
propostas enviadas pela comissão encarregada e apoiadas pelo plenário, merece destaque
a seguinte proposta:
Que o trabalho da mulher na Igreja seja no mesmo nível de outros
ministérios, com igual oportunidade de participação no ministério da Palavra,
da administração e da diaconia. Que, segundo os exemplos da Igreja na época do
Novo Testamento, haja uma fiel mordomia das atividades femininas dentro do
contexto de cada comunidade[...][4]
Pela primeira vez, dentro do ramo presbiteriano no Brasil,
as mulheres tinham a possibilidade de ser diaconisas, presbíteras e pastoras.
Isso era apenas o reconhecimento de um trabalho que as mulheres já vinham
realizando de fato.
São as próprias mulheres que contam como foi poder
participar de Conselhos das Igrejas e das assembléias nacionais e poder ocupar
cargos na estrutura administrativa:
Na
verdade, aqui na Igreja local, nós mulheres já trabalhávamos em tudo, só não
participávamos do Conselho. Na hora das decisões eram os homens, mas nós
dávamos nossas opiniões. Não tinha aquele machismo, todo mundo participava
[...].
Agora, na
IPU, a diferença é grande, muito grande mesmo. Antes a gente só ia na reunião
da SAF, apenas como 'auxiliadoras'. Das outras reuniões de decisão do
Presbitério só os homens participavam. Agora eu tenho participado das reuniões
do Presbitério e das assembléias e posso dar minhas opiniões, sugestões e vejo
que estou contribuindo para a Igreja, vejo resultado. Sinto que alguma coisa
estou fazendo em benefício da Igreja. Quando, nas reuniões, dividimos em
comissões e eu faço parte de alguma, sinto que tenho liberdade de estar junto
com os pastores, dou minhas opiniões e eu sei que isto ajuda. Sinto que sou
respeitada, ouvida e algumas sugestões minhas são acatadas sempre que é para o
bem da Igreja. Isto é bom[5].
O depoimento revela como, na realidade, as mulheres já
sempre opinavam e participavam nas decisões das Igrejas locais, mesmo que os
estatutos da IPB tenham reservado um lugar e um espaço bastante reduzido para
elas. Percebe-se que a depoente se sente como sujeito atuante na história
da Igreja e valorizada por estar participando,
junto com os pastores, das discussões da Igreja.
Algumas
mulheres, que não estavam acostumadas a participar destas Assembléias Gerais,
estranharam este fato no início, mas logo se acostumaram a participar do poder:
Olha, eu
levei um tempo para me entrosar. Chegava nas reuniões e não entendia nada do
que estava se passando, levei um tempo para entender. Mas aos poucos fui me
sentindo à vontade. Participo, dou minhas opiniões, quando estou em alguma comissão
que sinto dificuldade para entender o assunto, procuro alguém com mais
experiência para me explicar. Já tive a honra de ser tesoureira do Presbitério.
Hoje não quero perder nenhuma reunião[6].
As mulheres sempre participaram dos espaços internos de suas
Igrejas. Agiam como professoras nas classes de escola dominical de crianças,
jovens e adolescentes. Integraram a SAF. Agora sentem que estão ocupando outros
espaços, onde é possível falar, opinar, discordar. Sentem-se visíveis na
estrutura e veem que o que fazem pela Igreja é reconhecido. É impossível falar
da história da IPU no PSVD sem lembrar as tantas mulheres que fizeram e ainda fazem
a história da nossa igreja, atuando em todos os âmbitos. Evito citar nomes para
não cometer a injustiça de esquecer algum. Deixo a cada leitor e leitora a
tarefa de puxar no fio da memória e lembrar as mulheres que trabalharam e
trabalham ainda hoje na igreja.
As mulheres hoje na
IPU
Vimos que a IPU foi a primeira igreja da família presbiteriana
a reconhecer a ordenação de mulheres para os diversos ministérios da Igreja:
diaconal, presbiterial e pastoral. Imediatamente foram eleitas e ordenadas
mulheres diáconas e presbíteras. A primeira pastora da IPU, no entanto, é de
origem luterana: Maria Luísa Rückert. Ela se filiou, em 1992, à IPU,
tornando-se, posteriormente, vice-moderadora e assumindo, mais tarde, por
substituição, a moderação da igreja. Hoje, a IPU conta, em seu quadro, com 101
pessoas exercendo o ministério pastoral ordenado, das quais 16 são mulheres, ou
seja, apenas 15,34%. Com exceção do biênio 1993-1995, sempre houve também
presença de mulheres no Conselho Coordenador. Já tivemos uma Secretária
Executiva, Elinete Wanderlei Paes, e duas moderadoras, Romélia Meyer e, atualmente,
Anita Sue Wright Torres. A ordenação
feminina talvez seja um dos pontos mais
pacíficos dentro da IPU. Mas não basta
“dizer” ou “permitir” que as mulheres tenham espaço na Igreja. É necessária uma
mudança de postura por parte da Igreja. Ainda há, na IPU, pouco espaço para a
discussão das relações de gênero; a teologia e a hermenêutica feministas são quase
que desconhecidas, se não olhadas com descaso e preconceito por parte de muitas
pessoas. Ao fazermos 34 anos, é preciso avaliar o quanto avançamos e onde
precisamos avançar ainda mais. Para as mulheres da IPU, especialmente para as
que exercem cargos de liderança e a função pastoral, e para a igreja como um
todo trago algumas perguntas para reflexão e autocrítica:
- Em que nós mulheres temos feito a diferença?
- Nos conteúdos das prédicas e nas lições de Escolas
Dominicais a IPU tem incluído as reflexões de gênero?
- Que imagem de Deus estamos construindo na nossa
comunidade?
-Em nossa reflexão teológica, temos procurado desconstruir
conceitos e posicionamentos que inferiorizam as mulheres?
- A IPU tem se colocado contra todo e qualquer discurso que
utilize a Bíblia para justificar a opressão da mulher?
- A linguagem inclusiva tem sido usada em seus documentos,
liturgias e prédicas?
- Qual tem sido o nosso compromisso nas questões de direitos
das mulheres e no combate à violência contra a mulher?
Uma Igreja que deu um passo tão importante há 34 anos deve
continuar comprometida com seus princípios fundantes e, além disso, buscar
atualizar-se sempre. Por isso, é necessário revisar e atualizar a teologia,
quando houver discursos e linguagens patriarcais e sexistas, e acabar com qualquer
tipo de violência institucional contra a mulher, não só fora, mas especialmente
dentro do âmbito da própria igreja. Isso significa continuar na firme vontade
de ser “uma nova forma de ser igreja”.
Revda. Sônia Mota, 1ª pastora ordenada pela IPU.
.
[1]
Depoimento da presbítera Lizete Miranda, em julho de 2002.
[2]
Entrevista concedida por Ester Mota Lee, presbítera da Igreja Presbiteriana de
Governador Mangabeira, em julho de 2002.
[3]
Esta expressão se tornaria marca registrada da IPU.
[4]
Boletim do II Encontro de Presbiterianos. Belo Horizonte, 24 a 26/03/1978.
[5]
Depoimento de Ester Mota Lee, presbítera da Igreja Presbiteriana Unida de
Governador Mangabeira, em agosto de 2002.
[6]
Depoimento de Adalgisa Mota de Almeida, presbítera da Igreja de Muritiba, em
agosto de 2002.
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